PARÁGRAFO 3
OS MISTÉRIOS DA VIDA DE CRISTO
512.
No tocante à vida de Cristo, o Símbolo da Fé fala
somente dos mistérios da encarnação (concepção e nascimento) e da páscoa
(paixão, crucifixão, morte, sepultamento, descida aos infernos, ressurreição,
ascensão). Não diz nada, explicitamente dos mistérios da vida oculta e pública
de Jesus. Contudo, os artigos da fé referentes à encarnação e à páscoa de Jesus
iluminam toda a vida terrestre de Cristo. “Tudo o que Jesus fez e ensinou,
desde o começo até o dia em que foi elevado ao céu” (At 1, 1-2) deve
ser visto à luz dos mistérios do Natal e da Páscoa.
513.
A catequese, conforme as circunstâncias, há de
desenvolver toda a riqueza dos mistérios de Jesus. Aqui é suficiente indicar
alguns elementos comuns a todos os mistérios da vida de Cristo (I), para em
seguida esboçar os principais mistérios de sua vida oculta (II) e pública
(III).
I.
Toda a vida de Cristo é mistério
514.
Muitas coisas que interessam à curiosidade humana acerca
de Jesus não figuram nos Evangelhos. Quase nada é dito sobre sua vida em Nazaré,
e mesmo grande parte de sua vida pública não é relatada. O que foi escrito nos Evangelhos
foi “para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
tenhais a vida em seu nome” (Jo 20, 31).
515.
Os Evangelhos foram escritos por homens que estiveram
entre os primeiros a ter a fé e que queriam compartilhá-la com outros. Depois
de terem conhecido na fé quem é Jesus, puderam ver e fazer ver os traços de seu
mistério em toda a sua vida terrestre. Desde os panos que envolveram em sua
natividade até o vinagre de sua Paixão e o sudário de sua ressurreição, tudo na
vida de Jesus é sinal de seu Mistério. Por meio de seus gestos, de seus milagres,
de suas palavras, foi revelado que “nele habita corporalmente toda a plenitude
da divindade” (Cl 2, 9). Sua humanidade aparece, assim, como o “sacramento”,
isto é, o sinal e o instrumento de sua divindade e da salvação que ele traz. Aquilo
que havia de visível em sua vida terrestre apontavam para o mistério invisível
de sua filiação divina e de sua missão redentora.
OS TRAÇOS COMUNS DOS MIS TÉRIOS DE JESUS
516.
Toda a vida de Cristo é revelação do Pai:
suas palavras e seus atos, seus silêncios e seus sofrimentos, sua maneira de
ser e de falar. Jesus pode dizer: “Quem me viu, tem visto o Pai” (Jo 14,
9); e o Pai pode dizer: “Este é o meu Filho, o eleito. Escutai-o” (Lc 9,
35). Tendo Nosso Senhor se feito homem para cumprir a vontade do Pai, os mínimos
traços de seus mistérios nos manifestam “o amor de Deus por nós”.
517.
Toda a vida de Cristo é mistério de redenção.
A redenção nos vem, antes de tudo, pelo sangue da cruz, porém este
mistério está em ação em toda a vida de Cristo: em sua Encarnação, pela qual,
fazendo-se pobre, nos enriquece por sua pobreza; em sua vida oculta, que, por sua
submissão, serve de reparação para nossa insubmissão; em sua palavra, que
purifica seus ouvintes; em suas curas e em seus exorcismos, pelos quais “assumiu
as nossas dores e carregou as nossas enfermidades” (Mt 8, 17); em sua
ressurreição, pela qual nos justifica.
518.
Toda a vida de Cristo é mistério de recapitulação. Tudo
o que Jesus fez, disse e sofreu tinha por meta restabelecer, em sua vocação
primeira, o homem caído:
“Quando ele se encarnou
e se fez homem, recapitulou em si mesmo a longa história dos homens. Em
síntese, nos proporcionou a salvação, de modo que aquilo que havíamos perdido
em Adão, isto é, sermos à imagem e à semelhança de Deus, o recuperamos em
Cristo Jesus. Exatamente por isso, Cristo passou por todas as idades da vida, assim
restituindo aos homens a comunhão com Deus”.
NOSSA COMUNHÃO COM OS MISTÉRIOS DE JESUS
519.
Toda a riqueza de Cristo “é destinada a cada homens
e constitui o bem de cada um”. Cristo não viveu sua vida para si mesmo,
mas para nós, desde a encarnação “por nós homens e por nossa
salvação” até sua morte “pelos nossos pecados” (1 Cor 15, 3) e sua
ressurreição “para nossa justificação” (Rm 4, 25). Ainda agora, ele é “nosso
defensor junto ao Pai” (1 Jo 2, 1) “já que está sempre vivo” (Hb 7,
25) para interceder por nós”. Por tudo o que viveu e sofreu por nós, uma vez
por todas, Ele permanece para sempre “na presença de Deus, em nosso favor”
(Hb 9, 24).
520.
Em toda a sua vida, Jesus mostra-se como nosso
modelo: Ele é “o homem perfeito”, que nos convida a nos tornarmos seus
discípulos e a segui-lo: por seu rebaixamento, deu-nos um exemplo a imitar; por
sua oração, atrai à oração; por sua pobreza chama a aceitar livremente o
despojamento e as perseguições.
521.
Tudo o que Cristo viveu foi para que pudéssemos
vivê-lo nele e para que Ele o vivesse em nós. “Por sua Encarnação, o Filho
de Deus, de certo modo, se uniu a todo homem”. Nós somos chamados a ser uma única
coisa com Ele; Ele faz partilhar (comungar), como membros de seu corpo, de tudo
o que (Ele), por nós e como nosso modelo, viveu em sua carne.
“Devemos continuar e
realizar em nós os estados e os mistérios de Jesus e pedir-lhe, muitas vezes,
que os complete e realize em nós em toda a sua Igreja [...] O Filho de Deus
deseja conceder certa participação, e realizar como que uma extensão e
continuação de seus mistérios em nós e em toda a sua Igreja, pelas graças que
quer nos comunicar e pelos efeitos que quer operar em nós por esses mistérios.
Por estes meios quer realizá-los em nós”.
II.
Os mistérios da infância e da vida oculta de Jesus
A PREPARAÇÃO
522.
A vinda do Filho de Deus à terra é um acontecimento
de tal imensidão que Deus quis prepará-lo durante séculos. Ritos e sacrifícios,
figuras e símbolos da “primeira Aliança”, tudo ele faz convergir para Cristo. Ele
o anuncia pela boca dos profetas que se sucedem em Israel. Desperta, além
disso, no coração dos pagãos, a obscura expectativa desta vinda.
523.
São João Batista é o precursor imediato do
Senhor, enviado para preparar-lhe o caminho. “Profeta do Altíssimo” (Lc 1,
76), ele supera todos os profetas, dele é o último: inaugura o Evangelho;
saúda a vinda de Cristo desde o seio de sua mãe; encontra sua alegria em ser “o
amigo do noivo” (Jo 3, 29), que designa como “o Cordeiro de Deus, aquele
que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29). Precedendo a Jesus “com o espírito
e o poder de Elias” (Lc 1, 17), dá testemunho dele por sua pregação,
seu batismo de conversão e seu martírio.
524.
Ao celebrar cada ano a liturgia do
Advento, a Igreja atualiza esta espera do Messias: comungando com a longa
preparação da primeira vinda do Salvador, os fiéis renovam o ardente desejo de
sua segunda vinda. Pela celebração da natividade e do martírio do Precursor, a
Igreja se une a seu desejo: “É necessário que Ele cresça, e eu diminuia” (Jo 3,
30).
O MISTÉRIO DO NATAL
525.
Jesus nasceu na humildade de um estábulo, em uma
família pobre; as primeiras testemunhas do evento são simples pastores. É nesta
pobreza que se manifesta a glória do Céu. A Igreja não se cansa de cantar a
glória dessa noite:
“Hoje a Virgem traz
ao mundo o Eterno./ E a terra oferece uma gruta ao Inacessível./ Os anjos e os
pastores o louvam,/ E os magos caminham com a estrela./ Pois vós nascestes por
nós, Menino, Deus eterno!”.
526.
“Tornar-se criança” em relação a Deus é a condição
para entrar no Reino. Para isso, é preciso nos humilharmos, nos tornamos pequenos;
mais ainda, é preciso “nascer do alto” (Jo 3, 7), “nascer de Deus”
para nos tornarmos filhos de Deus”. O mistério do Natal realiza-se em nós,
quando Cristo “toma forma” em nós. O Natal é o mistério deste “admirável
intercâmbio”:
“O admirabile
commercium! Creator generis humani, anima corpus sumens, de Vir gine nasci
digna tus est; et procedens homo sine semine, largitus est nobis suam deitatem
– Admirável intercâmbio! O Criador da humanidade, assumindo corpo e alma, quis
nascer de uma Virgem. Feito homem sem intervenção do homem, nos doou sua
própria divindade!”.
OS MISTÉRIOS DA INFÂNCIA DE JESUS
527.
A circuncisão de Jesus, no oitavo dia
depois de seu nascimento, é sinal de sua inserção na descendência de Abraão, no
povo da Aliança; de sua submissão à Lei; de sua capacitação para o culto de
Israel, do qual participará durante toda a sua vida. Este sinal prefigura “a
circuncisão de Cristo”, que é o Batismo.
528.
A epifania é a manifestação de Jesus como
Messias de Israel, Filho de Deus e Salvador do mundo. Juntamente com o batismo
de Jesus no Jordão e com as bodas de Caná, ela celebra a adoração de Jesus
pelos “magos” vindos do Oriente. Nesses “magos”, representantes das religiões
pagãs adjacentes, o Evangelho vê as primícias das nações, que acolhem a Boa Nova
da salvação pela encarnação. A vinda dos magos a Jerusalém, para “adorar ao rei
dos judeus”, mostra que eles procuram em Israel, à luz messiânica da estrela de
Davi, aquele que será o rei das nações. Sua vinda significa que os pagãos só podem
reconhecer Jesus e adorá-lo como Filho de Deus e Salvador do mundo, voltando-se
para os judeus, recebendo deles sua promessa messiânica, tal como está contida
no Antigo Testamento. A epifania manifesta que “a plenitude dos pagãos entra na
família dos patriarcas” e adquire o “privilégio do povo eleito.
529.
A apresentação de Jesus no Templo o mostra
como o Primogênito pertencente ao Senhor. Com Simeão e Ana, é toda a espera de
Israel que vem ao encontro de seu Salvador (a tradição bizantina designa com o
termo “encontro” tal acontecimento). Jesus é reconhecido como o Messias
tão esperado, “luz das nações” e “glória de Israel”, mas é também “sinal de
contradição”. A espada de dor, predita a Maria, anuncia esta outra oblação,
perfeita e única, da cruz, que dará a salvação que Deus “preparou diante de
todos os povos”.
530.
A fuga para o Egito e o massacre dos inocentes
manifestam a oposição das trevas à luz: “Ela veio para o que era seu, mas os
seus não a acolheram” (Jo 1, 11). Toda a vida de Cristo estará sob o
signo da perseguição. Os seus compartilham com Ele esta perseguição. Sua volta
ao Egito lembra o Êxodo e apresenta Jesus como o libertador definitivo.
OS MISTÉRIOS DA VIDA OCULTA DE JESUS
531.
Durante a maior parte de sua vida, Jesus compartilhou
a condição da imensa maioria dos homens: uma vida corriqueira. Sem grandeza
aparente, vida de trabalho manual, vida religiosa judaica submetida à Lei de
Deus, vida na comunidade. De todo este período, nos é revelado que Jesus era “submisso”
a seus pais e que “ia crescendo em sabedoria, tamanho e graça diante de Deus e
dos homens” (Lc 2, 52).
532.
A submissão de Jesus a sua Mãe e a seu pai adotivo cumpre
com perfeição o quarto mandamento. Ela é a imagem temporal de sua obediência
filial a seu Pai celeste. A submissão diária de Jesus a José e a Maria
anunciava e antecipava a submissão da Quinta-feira Santa: “Não seja feita a
minha vontade…” (Lc 22, 42). A obediência de Cristo, no cotidiano da vida escondida,
já inaugurava a obra de restabelecimento daquilo que a desobediência de Adão havia
destruído.
533.
A vida oculta de Nazaré permite a todos os homens estar
unidos a Jesus nos caminhos mais cotidianos da vida:
“Nazaré é a escola na
qual se começa a compreender a vida de Jesus: a escola do Evangelho. […] primeiro
ensina uma lição de silêncio. Que nasça em nós a estima do silêncio,
esta admirável e indispensável condição do espírito. […] Uma lição
de vida familiar. Que Nazaré nos ensine o que é a família, sua
comunhão de amor, sua beleza austera e simples, seu caráter sagrado e
inviolável. […] Enfim recebemos uma lição de trabalho. Nazaré, ó casa
do “Filho do carpinteiro”, é aqui que gostaríamos de compreender e celebrar a
lei severa e redentora do trabalho humano […]; assim como gostaríamos finalmente
de saudar os trabalhadores do mundo inteiro e mostrar-lhes seu grande modelo,
seu irmão divino”.
534.
O reencontro de Jesus no Templo é o único
acontecimento que rompe o silêncio dos Evangelhos sobre os anos ocultos de
Jesus. Jesus deixa aí entrever o mistério de sua consagração total a uma missão
decorrente de sua filiação divina: “Não sabíeis que eu devo estar naquilo que é
de meu Pai?” (Lc 2,49). Maria e José “não compreenderam” esta palavra, mas a acolheram
na fé. Maria “guardava todas estas coisas no coração” (Lc 2,51), durante os
anos em que Jesus permanecia oculto no silêncio de uma vida comum.
III.
Os mistérios da vida pública de Jesus
O BATISMO DE JESUS
535.
A vida pública de Jesus tem início com seu Batismo
por João no rio Jordão. João Batista proclamava “um batismo de conversão para o
perdão dos pecados” (Lc 3, 3). Uma multidão de pecadores – publicanos,
soldados, fariseus, saduceus e prostitutas – vem se fazer batizar por ele. Jesus
aparece, o Batista hesita, mas Jesus insiste. E Ele recebe o Batismo. Então o
Espírito Santo, sob a forma de pomba, vem sobre Jesus e a voz do céu proclama: “Este
é o meu Filho bem-amado” (Mt 3,13-17). É a manifestação (“epifania”)
de Jesus como Messias de Israel e Filho de Deus.
536.
O Batismo de Jesus é, da parte dele, a aceitação e
a inauguração de sua missão de Servo sofredor. Deixa-se contar entre os
pecadores. Já é “o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo” (Jo 1,
29). já antecipa o “batismo” de sua morte sangrenta. Já vem “cumprir toda a
justiça” (Mt 3,15), isto é, submete-se por inteiro à vontade de seu Pai. Aceita
por amor este batismo de morte para a remissão dos nossos pecados. A esta
aceitação responde a voz do Pai, que coloca toda a sua complacência em seu
Filho. O Espírito, que Jesus possui em plenitude desde a sua concepção, vem “repousar”
sobre ele. Jesus será a fonte do Espírito para toda a humanidade. No Batismo de
Jesus, “abriu-se o céu” (Mt 3, 16) que o pecado de Adão havia fechado;
e as águas são santificadas pela descida de Jesus e do Espírito, prelúdio da
nova criação.
537.
Pelo Batismo, o cristão é sacramentalmente
assimilado a Jesus, que antecipa em seu batismo a sua morte e ressurreição. O
cristão deve entrar neste mistério de rebaixamento humilde e de arrependimento,
descer à água com Jesus, para subir novamente com ele, renascer da água e do
Espírito, para se tornar, no Filho, bem-amado do Pai e viver “uma vida nova” (Rm
6, 4):
“Pelo Batismo, nos
sepultemos com Cristo, para ressuscitar com Ele; desçamos com Ele, para sermos
elevados com Ele; subamos novamente com Ele, para sermos glorificados nele”.
“Tudo o que aconteceu
com Cristo nos dá a conhecer que, depois da imersão na água, o Espírito Santo voa
sobre nós do alto do céu e que, adotados pela voz do Pai, nos tornamos filhos
de Deus”.
A TENTAÇÃO DE JESUS
538.
Os Evangelhos falam de um tempo de solidão de Jesus
no deserto, imediatamente após seu batismo por João: “Levado pelo Espírito ao
deserto” (Mc 1,12), Jesus ali fica quarenta dias jejuando, vive com os animais
selvagens e os anjos o servem. No final dessa permanência, Satanás o tenta por
três vezes, procurando questionar sua atitude filial para com Deus. Jesus
rechaça esses ataques que recapitulam as tentações de Adão no Paraíso e de
Israel no deserto. O Diabo afasta-se dele “até o tempo oportuno” (Lc 4,13).
539.
Os evangelistas assinalam o sentido salvífico desse
acontecimento misterioso, Jesus é o novo Adão, ficou fiel enquanto o primeiro
sucumbiu à tentação. Jesus cumpre à perfeição a vocação de Israel:
contrariamente aos que provocaram outrora a Deus durante quarenta anos no
deserto, Cristo se revela como o Servo de Deus totalmente obediente à vontade
divina. Nisso Jesus é vencedor do Diabo: ele “amarrou o homem forte” para retomar-lhe
a presa. A vitória de Jesus sobre o tentador no deserto antecipa a vitória da
paixão, obediência suprema de seu amor filial ao Pai.
540.
A tentação de Jesus manifesta a maneira que o Filho
de Deus tem de ser Messias, oposta à que lhe propõe Satanás e que os homens
desejam atribuir-lhe. É por isso que Cristo venceu o Tentador por nós: “De
fato, não temos um sumo sacerdote incapaz de se compadecer de nossas fraquezas,
pois ele mesmo foi provado em tudo, à nossa semelhança, sem, todavia, pecar” (Hb
4, 15). A Igreja se une, a cada ano, durante os quarenta dias da grande Quaresma,
ao mistério de Jesus no deserto.
“O REINO DE DEUS ESTÁ PRÓXIMO”
541.
“Depois que João foi preso, Jesus veio para a
Galileia, proclamando, nestes termos, o Evangelho de Deus: “Completou-se o
tempo e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede na Boa Nova” (Mc 1,
14-15). “Para cumprir a vontade do Pai, Cristo inaugurou o reino dos céus na
terra”. Ora, a vontade do Pai é “elevar os homens à participação da vida divina”.
Ele realiza tal intento reunindo os homens em torno de seu Filho, Jesus Cristo.
Esta reunião é a Igreja, que é na terra “A semente e o começo do reino de Deus”.
542.
Cristo está no centro do congraçamento dos homens
na “família de Deus”. Ele os convoca junto a si por sua palavra, por seus
sinais que manifestam o Reino de Deus, pelo envio de seus discípulos. Realizará
a vinda de seu Reino sobretudo pelo grande mistério de sua Páscoa: sua morte de
cruz e sua ressurreição. “Quando eu for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,
32). A esta união com Cristo são chamados todos os homens.
O ANÚNCIO DO REINO DE DEUS
543.
Todos os homens são chamados a entrar no
Reino. Anunciado primeiro aos filhos de Israel, este Reino messiânico está
destinado a acolher os homens de todas as nações. Para ter acesso a ele, é
preciso acolher a palavra de Jesus:
“A palavra do
Senhor comparada à semente semeada no campo: os que ouvem com fé e pertencem ao
pequeno rebanho de Cristo acolheram o próprio reino de Deus; depois, por sua
própria força, a semente germina e cresce até o tempo da colheita”.
544.
O Reino pertence aos pobres e aos pequenos, isto
é, aos que o acolheram com coração humilde. Jesus é enviado para “anunciar a
Boa-Nova aos pobres” (Lc 4, 18). Declara-os bem-aventurados, pois “deles
é o Reino dos Céus” (Mt 5, 3). Aos “pequenos” o Pai se dignou revelar
o que permanece escondido aos sábios e aos entendidos. Jesus compartilha a vida
dos pobres desde a manjedoura até a cruz; conhece a fome, a sede, a indigência.
Mais ainda: identifica-se com os pobres de todos os tipos e faz do amor ativo
para com eles a condição para se entrar em seu Reino.
545.
Jesus convida os pecadores à mesa do
Reino: “Não é a justos que vim chamar, mas a pecadores” (Mc 2, 17).
Convida-os à conversão sem a qual não se pode entrar no Reino, depois, em
palavras e ações, lhes mostra a infinita misericórdia de seu Pai por eles e a
imensa alegria que haverá no céu, “por um só pecador que se converte” (Lc 15,
7). A prova suprema deste amor será o sacrifício de sua própria vida, “pela
remissão dos pecados” (Mt 26, 28).
546.
Jesus convida a entrar no Reino, servindo-se de parábolas, traço
típico de seu ensinamento. Por elas, convida ao banquete do Reino. Ele exige,
no entanto, também uma opção radical: para adquirir o Reino é preciso dar tudo; as
palavras não bastam, são necessários atos. As parábolas são como espelhos para
o homem: ele acolhe a palavra como uma terra boa? Que faz ele dos talentos
recebidos? Jesus e a presença do Reino neste mundo estão secretamente no
coração das parábolas. É preciso entrar no Reino, isto é, tornar-se discípulo
de Cristo para “conhecer os mistérios do Reino dos Céus” (Mt 13, 11).
Para os que “estão fora” (Mc 4, 11), tudo permanece enigmático.
OS SINAIS DO REINO DE DEUS
547.
Jesus acompanha suas palavras com numerosos “milagres,
prodígios e sinais” (At 2,22) que manifestam que o Reino está presente nele.
Atestam que Jesus é o Messias anunciado.
548.
Os sinais operados por Jesus testemunham que o Pai o
enviou. Convidam a crer nele. Aos que a Ele se dirigem com fé, concede o que
pedem. Assim, os milagres fortificam a fé naquele que realiza as obras de seu
Pai: testemunham que Ele é o Filho de Deus. No entanto, podem também ser “ocasião
de escândalo”. Não se destinam a satisfazer a curiosidade e o desejo de algo
mágico. Apesar de seus milagres tão evidentes, Jesus é rejeitado por alguns; até
o acusam de agir por intermédio dos demônios.
549.
Ao libertar algumas pessoas de males terrestres –
fome, injustiça, doença, morte –, Jesus operou sinais messiânicos. Ele, no
entanto, não veio para abolir todos os males da terra, mas para libertar os
homens da mais grave das escravidões, a do pecado, que causa empecilhos à sua
vocação de filhos de Deus e causa todas as suas escravidões humanas.
550.
O advento do Reino de Deus é a derrota do reino de
Satanás: “Se expulso, no entanto, pelo Espírito de Deus, é porque já chegou até
vós o Reino de Deus” (Mt 12, 28). Os exorcismos de Jesus libertam homens do domínio
dos demônios. Antecipam a grande vitória de Jesus sobre “o príncipe deste mundo”.
É pela cruz de Cristo que o Reino de Deus será definitivamente estabelecido: “Regnavit
a ligno Deus – Deus reinou do alto do madeiro”.
“AS CHAVES DO REINO”
551.
Desde o início de sua vida pública, Jesus escolheu
alguns homens, em número de doze, para estarem com Ele e para participar de sua
missão e lhes dá participação em sua autoridade “Ele os enviou para anunciar o
Reino de Deus e curar” (Lc 9, 2). Permanecem eles para sempre associados
ao reino de Cristo, pois Jesus dirige a Igreja por intermédio deles:
“Por isso, assim
como meu Pai me confiou o Reino, eu também vos confio o Reino. Havereis de
comer e beber à minha mesa no meu Reino, e vos sentareis em tronos para julgar
as doze tribos de Israel” (Lc 22, 29-30).
552.
No colégio dos Doze, Simão Pedro ocupa o primeiro
lugar. Jesus confiou-lhe uma missão única. Graças a uma revelação vinda do Pai,
Pedro confessado: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16, 16).
Nosso Senhor lhe declara na ocasião: “Por isso eu te digo: tu és Pedro, e sobre
esta pedra edificarei a minha Igreja, e as forças do Inferno não poderão
vencê-la” (Mt 16, 18). Cristo, “pedra viva”, garante à sua Igreja construída
sobre Pedro, a vitória sobre as potências de morte. Pedro, em razão da fé por
ele confessada, permanecerá como a rocha inabalável da Igreja. Terá por missão
defender esta fé de todo desfalecimento e confirmar nela seus irmãos.
553.
Jesus confiou a Pedro uma autoridade específica: “Eu
te darei as chaves do reino dos céus: tudo o que ligares na terra será ligado
nos Céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,
19). O “poder das chaves” designa a autoridade para governar a casa de Deus,
que é a Igreja. Jesus, o “Bom Pastor” (Jo 10, 11), confirmou este encargo
depois de sua ressurreição: “Apascenta minhas ovelhas” (Jo
21, 15-17). O poder de “ligar e desligar” significa a autoridade para
absolver os pecados, pronunciar juízos doutrinais e tomar decisões
disciplinares na Igreja. Jesus confiou esta autoridade à Igreja pelo ministério
dos Apóstolos e particularmente de Pedro, o único ao qual confiou
explicitamente as chaves do Reino.
UM ANTEGOZO DO REINO: A TRANSFIGURAÇÃO
554.
Desde o dia em que Pedro confessou que Jesus é o
Cristo, o Filho do Deus vivo, o Mestre “começou a explicar aos discípulos que era
necessário ele ir a Jerusalém, sofrer muito… ser morto e, no terceiro dia, ressuscitar” (Mt 16,
21): Pedro repele este anúncio, os demais também não o compreendem. Neste
contexto, situa-se o episódio misterioso da transfiguração de Jesus sobre um
alto monte, diante de três testemunhas escolhidas por ele: Pedro, Tiago e João.
O rosto e as vestes de Jesus tornam-se fulgurantes de luz, aparecem Moisés e
Elias que falam “sobre a saída desde mundo que Jesus iria consumar em Jerusalém” (Lc 9,
31). Uma nuvem os cobre e uma voz do céu diz: “Este é o meu Filho, o Eleito; escutai-o” (Lc 9,
35).
555. Por um instante, Jesus mostra sua glória divina, assim confirmando a confissão de Pedro. Mostra também que, para “entrar na sua glória” (Lc 24, 26), deve passar pela cruz em Jerusalém. Moisés e Elias haviam visto a glória de Deus sobre a montanha; a Lei e os Profetas tinham anunciado os sofrimentos do Messias. A paixão de Jesus é sem dúvida a vontade do Pai: o Filho age como servo de Deus. A nuvem indica a presença do Espírito Santo: “Tota Trinitas apparuit: Pater in voce; Filius in homine, Spiritus in nube clara – A Trindade inteira apareceu: o Pai, na voz; o Filho, no homem; o Espírito, na nuvem clara”.
“Vós vos transfigurastes
na montanha e, porquanto eram capazes, vossos discípulos contemplaram vossa
glória, Cristo Deus, para que, quando vos vissem crucificado, compreendessem
que vossa Paixão era voluntária e anunciassem ao mundo que vós sois verdadeiramente
a irradiação do Pai”.
556.
No limiar da vida pública, o batismo; no limiar da páscoa,
a transfiguração. Pelo batismo de Jesus “declaratum fuit mysterium primae regenerationis
– foi manifestado o mistério da primeira regeneração”: o nosso Batismo; a
transfiguração “est sacramentum secundae regenerationis – é o sacramento
da segunda regeneração”: a nossa própria ressurreição. Desde agora participamos
da ressurreição do Senhor pelo Espírito Santo que age no sacramento do corpo de
Cristo. A transfiguração nos dá um antegozo da vinda gloriosa do Cristo, “que
transformará o nosso corpo, humilhado, tornando-o semelhante ao seu corpo
glorioso” (Fl 3, 21). Ela nos lembra igualmente que é necessário passar por
muitos sofrimentos para entrar no Reino de Deus” (At 14, 22):
“Pedro ainda não
tinha compreendido isso, desejar viver com Cristo, sobre a montanha. Ele a reservou-te
isto, Pedro, para depois da morte. Mas agora, Ele mesmo diz: desce para sofrer
na terra, para servir na terra, para ser desprezado, crucificado na terra. A
Vida desce para se fazer matar; o Pão desce para sentir a fome; o Caminho desce
para se cansar da caminhada; a Fonte desce para ter sede; e tu recusas a sofrer?”.
A SUBIDA DE JESUS PARA JERUSALÉM
557.
Quando ia se completando o tempo para ser elevado
ao céu, Jesus tomou a firme decisão de partir para Jerusalém” (Lc
9, 51). Com esta decisão, indicava que subia a Jerusalém pronto para
morrer. Por três vezes tinha anunciado sua paixão e sua ressurreição. Ao
dirigir-se para Jerusalém, disse: “Não convém que um profeta morra fora de
Jerusalém” (Lc 13, 33).
558.
Jesus lembra o martírio dos profetas que tinham
sido mortos em Jerusalém. Todavia, persiste em convidar Jerusalém a congregar-se
em torno dele: “Quantas vezes quis eu reunir teus filhos, como uma galinha reúne
seus pintinhos debaixo das asas, mas não quiseste!” (Mt 23, 37b).
Quando Jerusalém está à vista, Jesus chora sobre ela e exprime uma vez mais o
desejo de seu coração: “Se tu também compreendesses hoje o que te pode trazer a
paz! Agora, porém, está escondido aos teus olhos!” (Lc 19, 42).
A ENTRADA MESSIÂNICA DE JESUS EM JERUSALÉM
559.
Como Jerusalém vai acolher seu Messias? Embora
sempre se tivesse subtraído às tentativas populares de fazê-lo rei, Jesus
escolhe o momento e prepara os detalhes de sua entrada messiânica na cidade de “Davi,
seu pai” (Lc 1, 32). É aclamado como filho de Davi, aquele que traz a
salvação (“hosana” quer dizer “salva-nos!”, “dá a salvação!”). Ora, o “Rei da Glória”
(Sl 24, 7-10) entra em sua cidade, “montado num jumento” (Zc 9, 9): não
conquista a filha de Sião, figura de sua Igreja, nem pela astúcia nem pela
violência, mas pela humildade que dá testemunho da Verdade. Por isso os
súbditos de seu Reino, nesse dia, são as crianças e os “pobres de Deus” que o
aclamam como os anjos o anunciaram aos pastores. A aclamação deles – “Bendito o
que vem em nome do Senhor” (Sl 118, 26) – é retomada pela Igreja no “Sanctus” da
liturgia eucarística, para abrir o memorial da Páscoa do Senhor.
560.
A entrada de Jesus em Jerusalém manifesta a
vinda do Reino que o Rei-Messias vai realizar pela páscoa de sua morte e de sua
ressurreição. É com a sua celebração, no Domingo de Ramos, que a liturgia da
Igreja abre a grande Semana Santa.
Resumindo:
561.
“Toda a vida de Cristo foi
um contínuo ensinamento: seus silêncios, seus milagres, seus gestos, sua
oração, seu amor ao homem, sua predileção pelos pequenos e pelos pobres, a
aceitação do sacrifício total na cruz, pela redenção do mundo, sua ressurreição
constituem a atuação de sua palavra e o cumprimento da Revelação”.
562.
Os discípulos de Cristo
devem conformar com ele até ele se formar neles. “Por isso, somos inseridos
nos mistérios de sua vida, com ele configurados, com ele mortos e com ele ressuscitados,
até que com ele reinemos”.
563.
Seja pastor, seja mago, não
se pode atingir a Deus na terra senão ajoelhados diante da manjedoura de Belém
e o adorando, escondido na fraqueza de uma criança.
564.
Por sua submissão a Maria
e José, assim como por seu humilde trabalho durante muitos anos em Nazaré,
Jesus nos dá o exemplo da santidade na vida cotidiana da família e do trabalho.
565.
Desde o início de sua vida
pública, em seu batismo, Jesus é o “Servo”, inteiramente consagrado à obra
redentora, que se realizará pelo “batismo” de sua paixão.
566.
A tentação no deserto
mostra Jesus, Messias humilde que triunfa sobre Satanás por sua total adesão ao
desígnio de salvação querido pelo Pai.
567.
O reino dos céus foi
inaugurado na terra por Cristo. “Manifesta-se lucidamente aos homens na
palavra, nas obras e na presença de Cristo”. A Igreja é a semente e o
começo deste Reino. Suas chaves são confiadas a Pedro.
568.
A transfiguração de Cristo
tem por finalidade fortificar a fé dos Apóstolos em vista da paixão: a
subida à “alta montanha” prepara a subida ao Calvário. Cristo, cabeça da
Igreja, manifesta o que seu corpo contém e irradia nos sacramentos: “a
esperança da Glória” (Cl 1, 27).
569.
Jesus subiu
voluntariamente a Jerusalém, embora soubesse que lá morreria de morte violenta
por causa da contradição por parte dos pecadores.
570.
A entrada de Jesus em
Jerusalém manifesta a vinda do Reino, que o Rei-Messias, acolhido em sua cidade
pelas crianças e pelos humildes de corarão, vai realizar por meio da páscoa de
sua morte e ressurreição.
ARTIGO 4
“JESUS CRISTO PADECEU SOB PÔNCIO PILATOS FOI
CRUCIFICADO, MORTO E SEPULTADO”
571.
O mistério pascal da cruz e da ressurreição de
Cristo está no centro da Boa Nova que os Apóstolos e a Igreja, na continuidade
deles, devem anunciar ao mundo. O projeto salvador de Deus realizou-se de “una
vez por todas” (Hb 9, 26) pela morte redentora de seu Filho, Jesus
Cristo.
572.
A Igreja permanece fiel à “interpretação de todas
as Escrituras” dada pelo próprio Jesus, seja antes, seja depois de sua páscoa. “Não
era necessário que o Cristo sofresse tudo isso para entrar na sua glória?” (Lc 24,
26). Os sofrimentos de Jesus tomaram sua forma histórica concreta pelo fato de ele
ter sido “rejeitado pelos anciãos, sumos sacerdotes e escribas” (Mc 8,
31), que o entregaram “aos pagãos para zombarem dele, açoitá-lo e crucifica-lo” (Mt 20,
19).
573.
A fé pode, pois, tentar investigar as
circunstâncias da morte de Jesus, transmitidas fielmente pelos Evangelhos e iluminadas
por outras fontes históricas, para melhor compreender o sentido da redenção.
PARÁGRAFO 1
JESUS E ISRAEL
574.
Desde o início do ministério público de Jesus,
fariseus e adeptos de Herodes, com sacerdotes e escribas, combinaram de
mata-lo. Por causa de certos atos por ele praticado (expulsões de demônios;
perdão dos pecados, curas em dia de sábado, interpretação original dos preceitos
de pureza da Lei, familiaridade com publicanos e com pecadores públicos), Jesus
pareceu a alguns mal-intencionados, suspeito de possessão demoníaca. Ele é acusado
de blasfémia e de falso profetismo, crimes religiosos que a Lei punia com a
pena de morte sob apedrejamento.
575.
Muitas atos e palavras de Jesus constituíram,
portanto, um “sinal de contradição” para as autoridades religiosas de Jerusalém
– que o Evangelho de São João com frequência denomina “os judeus” – mais ainda
do que para o comum do povo de Deus. Sem dúvida, suas relações com os fariseus
não foram exclusivamente polêmicas. São os fariseus que o previnem do perigo
que corre. Jesus elogia alguns deles, como o escriba de Mc 12, 34, e repetidas
vezes come com fariseus. Jesus confirma doutrinas compartilhadas por essa elite
religiosa do povo de Deus: a ressurreição dos mortos; as formas de piedade
(esmola, jejum e oração); o hábito de dirigir-se a Deus como Pai; a
centralidade do mandamento do amor a Deus e ao próximo.
576.
Aos olhos de muitos, em Israel, Jesus parece agir
contra as instituições essenciais do povo eleito:
– a
submissão à Lei na integralidade de seus preceitos escritos e, para os
fariseus, na interpretação da tradição oral;
– a centralidade do Templo de Jerusalém como lugar
santo, em que Deus habita de forma privilegiada;
– a fé no Deus único, de cuja glória nenhum homem
pode compartilhar.
I.
Jesus e a Lei
577.
Jesus fez, no começo do Sermão da Montanha; uma
advertência solene, na qual apresentou a Lei dada por Deus no Sinai por ocasião
da primeira Aliança à luz da graça da Nova Aliança:
“Não penseis que
vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para cumprir. Em
verdade eu vos digo: antes que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só
letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo aconteça. Portanto, quem
desobedecer a um só destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar os outros,
será considerado o menor no Reino dos Céus. Porém, quem os praticar e ensinar
será considerado grande no Reino dos Céus” (Mt 5, 17-19).
578.
Jesus, o Messias de Israel, portanto, o maior no
Reino dos Céus, tinha a obrigação de cumprir a Lei, executando-a em sua integralidade
até seus mínimos preceitos, segundo suas próprias palavras. Ele é o único que
consegue cumpri-la com perfeição. Os Judeus, conforme sua própria confissão, nunca
conseguiram cumprir a Lei em sua integralidade sem violar um mínimo preceito. Eis
a questão pela qual, em cada festa anual da Expiação, os filhos de Israel pedem
a Deus perdão por suas transgressões da Lei. Com efeito, a Lei constitui um
todo e, como recorda São Tiago, “Quem pretende observar a Lei inteira, mas cometa
transgressão num só ponto, torna-se culpado contra toda a Lei” (Tg 2, 10).
579.
Este princípio da integralidade da observância da
Lei, não somente em sua letra, mas em seu espírito, era de grande valor para os
fariseus. Tal princípio, tornado extensivo a Israel, levou muitos judeus do
tempo de Jesus a um zelo religioso extremo. Não querendo ele se envolver em uma
casuística “hipócrita”, só podia preparar o povo para aquela intervenção
inaudita de Deus, que será o cumprimento perfeito da Lei exclusivamente pelo Justo
em lugar de todos os pecadores.
580.
O cumprimento perfeito da Lei só podia ser obra do
Legislador divino, nascido sujeito à Lei na pessoa do Filho. Em Jesus, a Lei
não aparece mais gravada em tábuas de pedra, mas “em seu coração” (Jr 31,
33) de Servo, o qual, pelo fato de promover fielmente “o que é de direito”
(Is 42, 3), tornou-se a Aliança do povo de Deus (cf. Is 42, 6).
Jesus cumpriu a Lei até o ponto de tomar sobre si “a maldição da Lei”, na qual
incorreram aqueles que “não praticam todos os seus preceitos”, de fato “pela
sua morte, ele redimiu as transgressões cometidas no decorrer da primeira
aliança” (Hb 9, 15).
581.
Jesus apareceu aos olhos dos judeus e de seus
chefes espirituais como um “rabi”. Com frequência, argumentou na linha da
interpretação rabínica da Lei. Ao mesmo tempo, porém, Jesus só podia chocar os
doutores da Lei, já que não se contentava em propor sua interpretação em grau
de igualdade com as deles, porque “ensinava como alguém que tem autoridade, não
como os escribas” (Mt 7, 28-29). Nele, a mesma Palavra de Deus, que tinha
ressoado no Sinai para dar a Moisés a Lei escrita, se faz ouvir novamente sobre
a montanha das bem-aventuranças. Esta palavra não revoga a Lei, mas a cumpre,
fornecendo, de modo divino, a interpretação última dela: “Ouvistes que foi dito
aos antigos […]. Ora, eu vos digo” (Mt 5, 33-34). Com esta mesma
autoridade divina, Jesus desabona certas “tradições humanas” dos fariseus, que “invalidam
a palavra de Deus”.
582.
Indo mais longe, Jesus cumpre a Lei a respeito da pureza
dos alimentos, tão importante na vida diária judaica, revelando seu sentido “pedagógico”
por uma interpretação divina: “Tudo o que de fora entra no homem não pode
torná-lo impuro […], assim declarava puros todos os alimentos. […] O que sai da
pessoa é que a torna impura. Pois é de dentro, do coração humano, que saem as
más intenções” (Mc 7, 18-21). Ao dar, com autoridade divina, a
interpretação definitiva da Lei, Jesus acabou confrontando-se com alguns
doutores da Lei que não aceitavam a interpretação da Lei dada por Jesus, apesar
de garantida pelos sinais divinos que a acompanhavam. Isto vale particularmente
para a questão do sábado: Jesus lembra, muitas vezes com argumentos rabínicos,
que o descanso do sábado não é lesado pelo serviço de Deus ou do próximo,
executando por meio das curas operadas por Ele.
II.
Jesus e o templo
583.
Jesus, como antes dele os profetas, teve pelo Templo
de Jerusalém o mais profundo respeito. Nele foi apresentado por José e Maria,
quarenta dias após seu nascimento. Com doze anos, decide ficar no Templo para
lembrar a seus pais que deve dedicar-se às coisas de seu Pai. Durante os anos
de sua vida oculta, subiu ao Templo a cada ano, no mínimo por ocasião da
Páscoa. Até seu ministério público foi ritmado por suas peregrinações a
Jerusalém para as grandes festas judaicas.
584.
Jesus subiu ao Templo como lugar privilegiado de
encontro com Deus. O Templo é para ele a morada de seu Pai, uma casa de oração.
Ele se indigna pelo fato de o átrio externo do Templo ter se tornado um lugar
de comércio. Se expulsa os vendilhões do Templo, é por amor zeloso a seu Pai. “Não
façais da casa de meu Pai um mercado. Seus discípulos lembram-se do que está
escrito: O zelo por tua casa me há de devorar” (Sl 69, 10)”
(Jo 2, 16-17). Depois de ressurreição, os Apóstolos mantiveram o respeito
religioso pelo Templo.
585.
No limiar de sua paixão, Jesus, no entanto,
anunciou a ruína desse esplêndido edifício, do qual não restará mais pedra
sobre pedra. Há aqui o anúncio de um sinal dos tempos finais, que vão se ter
início com sua própria páscoa. Esta profecia, porém, foi erroneamente relatada
por testemunhas falsas, no momento do interrogatório de Jesus diante do sumo
sacerdote, sendo-lhe atribuída como injúria quando ele foi pregado à cruz.
586.
Longe de ter sido hostil ao Templo, aliás local em
que ministrou o essencial de seu ensinamento, Jesus fez questão de pagar o
imposto do Templo associando a este ato Pedro, que acabara de estabelecer como fundamento
para sua Igreja futura. Mais ainda: identificou-se com o Templo ao se
apresentar como a morada definitiva de Deus entre os homens. Eis por que sua
morte corporal decretada anuncia a destruição do Templo, (destruição) que
manifestará a entrada em uma nova era da História da Salvação: “Vem a hora em
que nem nesta montanha, nem em Jerusalém adorareis o Pai” (Jo 4, 21).
III.
Jesus e a fé de Israel no Deus único e salvador
587.
Se a Lei e o Templo de Jerusalém puderam ser
ocasião de “contradição” da parte de Jesus para as autoridades religiosas de
Israel, foi o papel dele na redenção dos pecados, obra divina por excelência,
que constituiu para elas a verdadeira pedra de escândalo.
588.
Jesus escandalizou os fariseus ao comer com os
publicanos e os pecadores com a mesma familiarmente com que comia com eles.
Contra os que, dentre os fariseus, “confiavam na sua própria justiça e
desprezavam os outros” (Lc 18, 9), Jesus afirmou: “Não é a justos que
vim chamar à conversão, mas a pecadores” (Lc 5, 32). Foi mais longe
ao proclamar, diante dos fariseus, que, sendo o pecado universal, os que
presumem não necessita de salvação estão cegos por conta própria.
589.
Jesus escandalizou, sobretudo, porque identificou
sua conduta misericordiosa para com os pecadores com a atitude do próprio Deus para
com eles. Chegou ao ponto de dar a entender que, partilhando a mesa dos
pecadores, os estava admitindo ao banquete messiânico. No entanto, foi
particularmente ao perdoar os pecados que Jesus deixou as autoridades
religiosas de Israel diante de um dilema. Por isto que disseram com razão,
cheias de espanto: “Só Deus pode perdoar os pecados” (Mc 2, 7). Ao
perdoar os pecados, ou Jesus blasfema – pois é um homem que se iguala a Deus –,
ou diz a verdade e sua pessoa torna então presente e revela o nome de Deus.
590.
Somente a identidade divina da pessoa de Jesus pode
justificar uma exigência tão absoluta quanto esta: “Quem não está comigo, é contra
mim” (Mt 12, 30); assim, também, quando diz que nele está “mais do que
Jonas, [...] mais do que Salomão” (Mt 12, 41-42), mais do que o Templo;
ou quando lembra, referindo-se a si mesmo, que Davi chamou o Messias de seu
Senhor e quando afirma: “Antes que Abraão existisse, Eu Sou” (Jo 8,
58); e até: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10, 30).
591.
Jesus pediu às autoridades religiosas de Jerusalém
que cressem nele por causa das obras de seu Pai que ele realizava. Tal ato de
fé tinha de passar, no entanto, por uma misteriosa morte de si mesmo, em vista
de um novo “nascimento do alto”, sob o impulso da graça divina. Essa exigência
de conversão ante um cumprimento tão surpreendente das promessas permite
compreender o trágico desprezo do sinédrio ao considerar que Jesus merecia a
morte como blasfemo. Seus membros agiam assim por “ignorância” e ao mesmo tempo
pelo “endurecimento” da sua “incredulidade”.
Resumindo:
592.
Jesus não aboliu a Lei do
Sinai, mas a cumpriu com tal perfeição que revela seu sentido último
e resgata as transgressões contra ela.
593.
Jesus venerou o Templo,
subindo até ele nas festas judaicas de peregrinação. Amou com amor zeloso esta
morada de Deus entre os homens. O Templo prefigura o seu mistério. Se anuncia a
destruição do Templo, é como manifestação de sua própria morte e da entrada em
uma nova era da história da salvação, na qual seu corpo será o Templo definitivo.
594.
Jesus realizou atos como o
perdão dos pecados – que o manifestaram como o próprio Deus Salvador. Alguns
judeus, não reconhecendo o Deus feito homem e vendo nele “um homem que se
faz Deus”, julgaram-no como blasfemo.
PARÁGRAFO 2
JESUS MORREU CRUCIFICADO
I.
O processo de Jesus
DIVERGÊNCIAS ENTRE AS AUTORIDADES JUDAICAS EM
RELAÇÃO A JESUS
595.
Entre as autoridades religiosas de Jerusalém não foram
somente o fariseu Nicodemos ou o ilustre José de Arimateia os discípulos secretos
de Jesus. Durante muito tempo, houve divergências acerca de Jesus, a ponto de, às
vésperas de sua Paixão, São João poder dizer que “muitos passaram a crer nele”,
ainda que de forma bem imperfeita (Jo 12, 42). Isso não tem nada de surpreendente,
se levarmos em conta que, no dia seguinte a Pentecostes, “um grande grupo de sacerdotes
judeus aderiu à fé” (At 6, 7) e que “alguns da seita dos fariseus [...]
haviam abraçado a fé” (At 15, 5), a ponto de São Tiago poder dizer a São
Paulo: “Há milhares de judeus que abraçaram a fé, e todos são fiéis observantes
da Lei” (At 21, 20).
596.
As autoridades religiosas de Jerusalém não foram
unânimes na conduta a adotar em relação a Jesus. Os fariseus ameaçaram de
excomunhão os que o seguissem. Àqueles que temiam – “Se deixarmos que ele
continue assim, todos vão acreditar nele, os romanos virão e destruirão nosso
Lugar Santo e a nossa nação” (Jo 11, 48) – o Sumo Sacerdote Caifás
propôs, profetizando: “Não percebeis que é melhor um só morrer pelo povo do que
perecer a nação inteira?” (Jo 11, 50). O Sinédrio, depois de declarar Jesus
“passível de morte”, na qualidade de blasfemador, mas tendo perdido o direito
de condená-lo à morte, o entrega aos romanos, o acusando de revolta política,
isto colocará Jesus em igualdade com Barrabás, acusado de “homicídio” (Lc 23,
19). São também ameaças políticas o que os chefes dos sacerdotes fazem a
Pilatos para que condene Jesus à morte.
OS JUDEUS NÃO SÃO COLETIVAMENTE RESPONSÁVEIS PELA
MORTE DE JESUS
597.
Levando em conta a complexidade histórica do
processo de Jesus, manifestada nos relatos evangélicos, e qualquer que possa
ser o pecado pessoal dos atores do processo (Judas, o Sinédrio, Pilatos), conhecido
só de Deus, não se pode atribuir responsabilidade ao conjunto dos judeus de
Jerusalém, a despeito dos gritos de uma multidão manipulada e das censuras coletivas
contidas nos apelos à conversão depois de Pentecostes. O próprio Jesus, ao perdoar
na cruz, e Pedro, depois dele, reconheceram a “ignorância” dos judeus de
Jerusalém e até de seus chefes. Menos ainda se pode, a partir de gritos do povo
– “Que o sangue dele recaia sobre nós e sobre nossos filhos” (Mt 27,
25) –, que é uma fórmula de ratificação, estender a responsabilidade aos outros
judeus, no espaço e no tempo:
Por isso a Igreja
declarou, muito oportunamente, no Concílio do Vaticano II: “Aquilo que se
perpetrou em sua paixão não pode indistintamente ser imputado a todos os judeus
que viviam então, nem aos de hoje. [...] Os judeus [...] não devem ser
apresentados nem como condenados por Deus nem como amaldiçoados, como se isto decorresse
das Sagradas Escrituras”.
TODOS OS PECADORES FORAM AUTORES DA PAIXÃO DE
CRISTO
598.
No magistério de sua fé e no testemunho dos seus
santos, a Igreja nunca esqueceu que “cada pecador individualmente é de fato
causa e instrumento dos sofrimentos”, por que passou o Divino Redentor. Levando
em conta que nossos pecados atingem o próprio Cristo, a Igreja não hesita em
imputar aos cristãos a responsabilidade mais grave no suplício de Jesus,
responsabilidade que, com excessiva frequência, estes debitaram quase
exclusivamente aos judeus.
“Evidentemente,
são mais gravemente culpados aqueles que frequentemente recaem em pecado. Se,
de fato, nossas culpas levaram Cristo ao suplício da cruz, aqueles que
mergulham no mal o crucificam novamente, pois está com eles o Filho de Deus e
eles o atingem com um crime mais grave do que aquele dos judeus. Esses, de
fato, ‘se o tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória’ (1
Cor 2, 8). Nós cristãos, ao contrário, ainda que confessando conhecê-lo,
de fato o renegamos com as nossas ações e levantamos contra ele nossas mãos
violentas e pecadoras.”
“Não foram os demônios
que o crucificaram, mas foste tu que fizeste crucificá-lo e ainda o crucificas,
quando te deleitas nos vícios e pecados”.
II.
A morte redentora de Cristo no desígnio divino de salvação
“JESUS ENTREGUE SEGUNDO O DESÍGNIO BEM DETERMINADO
DE DEUS”
599.
A morte violenta de Jesus não foi o resultado do acaso
em um conjunto infeliz de circunstâncias. Ela faz parte do mistério do projeto
de Deus, como explica São Pedro aos judeus de Jerusalém, já em primeiro
discurso de Pentecostes: “Deus em seu desígnio e previsão, determinou que Jesus
fosse entregue pelas mãos dos ímpios” (At 2, 23). Esta linguagem
bíblica não significa que os que “entregaram Jesus” tenham sido executores
passivos de um roteiro escrito de antemão por Deus.
600.
Para Deus, todos os momentos do tempo estão
presentes em sua atualidade. Ele estabelece, portanto, seu projeto eterno de “predestinação”,
incluindo nele a resposta livre de cada homem à sua graça: “foi o que aconteceu
nesta cidade, Herodes e Pôncio Pilatos uniram-se, com as nações pagãs e a
população de Israel, contra Jesus, teu santo servo, a quem ungiste, a fim de
executarem tudo o que a tua vontade haviam predeterminado que sucedesse”
(At 4, 27-28). Deus permitiu os atos nascidos de sua cegueira, a fim de
realizar seu projeto de salvação.
“MORTO POR NOSSOS PECADOS SEGUNDO AS ESCRITURAS”
601.
Este projeto divino de salvação mediante a morte do
“Servo, o Justo” havia sido anunciado antecipadamente na Escritura como um
mistério de redenção universal, isto é, de resgate que liberta os homens da
escravidão do pecado. São Paulo, em sua confissão de fé, que diz ter “recebido secundum
Scripturas”, professa que “Cristo morreu por nossos
pecados segundo as Escrituras” (1 Cor 15, 3). A morte redentora
de Jesus cumpre, em particular, a profecia do Servo Sofredor. Jesus esmo apresentou
o sentido de sua vida e de sua morte à luz do Servo Sofredor. Após sua
ressurreição, ele deu esta interpretação das Escrituras aos discípulos de Emaús,
e depois aos próprios Apóstolos.
“AQUELE QUE NÃO CONHECERA O PECADO, DEUS O FEZ
PECADO POR CAUSA DE NÓS”
602.
São Pedro pode, portanto, assim formular a fé
apostólica no projeto divino de salvação: “Tende consciência de que fostes resgatados
da vida fútil herdada de vossos pais, não por coisas perecíveis, como a prata
ou o outro, mas pelo precioso sangue de Cristo, cordeiro sem defeito e sem mancha.
Conhecido de antemão antes da criação do mundo, ele foi, neste final dos
tempos, manifestado em favor de vós” (1 Pe1, 18-20). Os pecados dos
homens, depois do pecado original, são sancionados pela morte. Ao enviar seu próprio
Filho na condição de escravo, condição de uma humanidade decaída e fadada à
morte por causa do pecado. “Aquele que não cometeu pecado, Deus o fez pecado
por nós, para que nele nos tornemos justiça de Deus” (2 Cor 5, 21).
603.
Jesus não conheceu a reprovação, como se Ele mesmo tivesse
pecado. Porém, no amor redentor que sempre o unia ao Pai, nos assumiu na perdição
de nosso pecado em relação a Deus, a ponto de poder dizer, em nosso nome, na
cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15, 34).
Tendo-o tornado solidário a nós, pecadores, “Deus, que não poupou seu próprio
Filho, mas o entregou por todos nós” (Rm 8, 32), a fim de que fôssemos
“reconciliados com Ele pela morte do seu Filho” (Rm 5, 10).
DEUS TEM A INICIATIVA DO AMOR REDENTOR UNIVERSAL
604.
Ao entregar seu Filho por nossos pecados, Deus
manifesta que seu desígnio sobre nós, é um desígnio de amor benevolente, que
antecede a qualquer mérito nosso: “Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos
a Deus, mas foi Ele quem nos amou e enviou o seu Filho como oferenda de expiação
pelos nossos pecados” (1 Jo 4, 10). “A prova de que Deus nos ama é
que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores” (Rm 5, 8).
605.
Este amor não exclui ninguém. Jesus o lembrou na
conclusão da parábola da ovelha perdida: “Do mesmo modo, o Pai que está nos
céus não deseja que se perca nenhum desses pequenos” (Mt 18, 14). Ele
afirma “dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 20, 28). Este último
termo não é restritivo: opõe o conjunto da humanidade à única pessoa do Redentor,
que se entrega para salvá-la. A Igreja, no seguimento dos Apóstolos, ensina que
Cristo morreu por todos os homens sem exceção: “Não há, não houve e não haverá
nenhum homem pelo qual Cristo não tenha sofrido”.
III.
Cristo ofereceu-se a seu Pai por nossos pecados
TODA A VIDA DE CRISTO É OFERENDA AO PAI
606.
O Filho de Deus, que “desceu do Céu não para fazer
sua vontade, mas a do Pai que o enviou”, “Ao entrar no mundo, Cristo declara:
[…] Eis que eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade […]. É em virtude dessa
vontade que somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo, realizada
uma vez por todas” (Hb 10, 5-10). Desde o primeiro instante de sua encarnação,
o Filho desposa o desígnio de salvação divino em sua missão redentora: “O meu
alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e levar a termo a sua obra”
(Jo 4, 34). O sacrifício de Jesus “pelos pecados do mundo inteiro” (1
Jo 2, 2) é a expressão de sua comunhão de amor ao Pai: “O Pai me ama,
porque dou a minha vida” (Jo 10, 17). “É preciso que o mundo saiba que eu amo
o Pai e faço como o Pai mandou” (Jo 14, 31).
607.
Este desejo de desposar o desígnio de amor redentor
de seu Pai anima toda a vida de Jesus, pois sua Paixão redentora é a razão de
ser de sua Encarnação – “Pai, livra-me desta hora? Mas foi precisamente para
esta hora que eu vim” (Jo 12, 27). “Será que não vou beber o cálice que o
Pai me deu?” (Jo 18, 11). Na cruz, antes que tudo fosse “consumado” (Jo 19,
30), ele ainda disse: “Tenho sede” (Jo 19, 28).
“O CORDEIRO QUE TIRA O PECADO DO MUNDO”
608.
Depois de ter aceito dar-lhe o Batismo junto com os
pecadores, João Batista viu e mostrou em Jesus o “Cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo”. Assim manifesta que Jesus é, ao mesmo tempo, o Servo Sofredor
que se deixa levar silencioso ao matadouro e carrega o pecado das multidões e o
cordeiro pascal, símbolo de redenção de Israel por ocasião da primeira Páscoa.
Toda a vida de Cristo exprime sua missão: “Servir e dar sua vida em resgate por
muitos”.
JESUS ABRAÇA LIVREMENTE O AMOR REDENTOR DO PAI
609.
Ao abraçar em seu coração humano o amor do Pai pelos
homens, Jesus “amou-os até o fim” (Jo 13, 1) – “ninguém tem amor maior do
que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15, 13). Assim, no
sofrimento e na morte, sua humanidade tornou-se o instrumento livre e perfeito
de seu amor divino, que quer a salvação dos homens. Com efeito, aceitou
livremente sua Paixão e sua Morte por amor de seu Pai e dos homens, que o Pai
quer salvar: “Ninguém me tira a vida, mas eu a dou por própria vontade”
(Jo 10, 18). Daí a liberdade soberana do Filho de Deus, quando Ele mesmo
vai ao encontro da morte.
NA CEIA, JESUS ANTECIPOU A OFERTA LIVRE DE SUA VIDA
610.
Jesus expressou, de modo supremo, a oferta livre de
si mesmo, na refeição que tornou com os doze Apóstolos, na “noite em que ia ser
entregue” (1 Cor 11, 23). Na véspera de sua Paixão, quando ainda estava
em liberdade, Jesus fez desta última Ceia com seus apóstolos o memorial de sua oferta
voluntária ao Pai, pela salvação dos homens – “Isto é o meu corpo, que é dado por vós” (Lc 22,
19); “Pois este é o meu sangue da nova Aliança, que é derramado em favor de
muitos, para remissão dos pecados” (Mt 26, 28).
611.
A Eucaristia que instituiu naquele momento será o “memorial”
de seu sacrifício. Jesus incluiu os Apóstolos em sua própria oferta e lhes pede
que a perpetuem. Com isso, institui seus Apóstolos sacerdotes da Nova Aliança: “Eu
me consagro por eles, a fim de que também eles sejam consagrados na verdade” (Jo 17,
19).
A AGONIA NO GETSÊMANI
612.
O cálice da Nova Aliança, que Jesus antecipou na
Ceia, oferecendo-se a si mesmo, o aceita, em seguida, das mãos do Pai em sua
agonia no Getsêmani, tornando-se “obediente até a morte” (Fl 2, 8). Jesus
ora: “Meu Pai, se possível, que este cálice passe de mim…” (Mt 26,
39). Exprime assim o horror que a morte representa para sua natureza humana.
Com efeito, a natureza humana de Jesus, como a nossa, está destinada à vida
eterna; porém, diversamente da nossa, ela é totalmente isenta do pecado, que
causa a morte; ela é sobretudo assumida pela pessoa divina do “Príncipe da vida”,
do “vivente”. Ao aceitar em sua vontade humana que a vontade do Pai seja feita,
aceita sua morte como redentora – “Carregou nossos pecados em seu próprio corpo,
sobre a cruz” (1 Pe 2, 24).
A MORTE DE CRISTO É O SACRIFÍCIO ÚNICO E DEFINITIVO
613.
A morte de Cristo é, ao mesmo tempo,
o sacrifício pascal, que realiza a redenção definitiva dos homens pelo
“cordeiro que tira o pecado do mundo”, e o sacrifício da Nova Aliança, que
reconduz o homem à comunhão com Deus, o reconciliando com ele pelo “sangue
derramado por muitos para a remissão dos pecados”.
614.
Este sacrifício de Cristo é único, Ele realiza e
supera todos os sacrifícios. Ele é primeiro um dom do próprio Deus Pai: é o Pai
que entrega seu Filho para nos reconciliar consigo. É, ao mesmo tempo, oferenda
do Filho de Deus feito homem, o qual, livremente e por amor, oferece sua vida a
seu Pai pelo Espírito Santo, para reparar nossa desobediência.
JESUS SUBSTITUI NOSSA DESOBEDIÊNCIA POR SUA
OBEDIÊNCIA
615.
“Como pela desobediência de um só homem, a
humanidade toda tornou-se pecadora, assim também, pela obediência de um só, todos
se tornarão justos” (Rm 5, 19). Por sua obediência até a morte, Jesus
realizou a substituição do Servo sofredor que oferece a si mesmo em sacrifício
expiatório, quando carrega o pecado de muitos, e os justifica levando
sobre si o pecado deles. Jesus prestou reparação por nossas nossas faltas e
satisfez o Pai por nossos pecados.
NA CRUZ, JESUS CONSUMA SEU SACRIFÍCIO
616.
É “o amor até o fim” que confere o valor de
redenção de reparação, de expiação, de satisfação ao sacrifício de Cristo. Ele nos
conheceu e amou a todos na oferenda de sua vida. “O amor de Cristo nos impele,
considerando que só morreu por todos e, portanto, todos morreram” (2 Cor
5, 14). Nenhum homem, ainda que o mais santo, tinha condições de tornar
sobre si os pecados de todos os homens e de se oferecer em sacrifício por
todos. A existência em Cristo da Pessoa divina do Filho, que supera e, ao mesmo
tempo, abraça todas as pessoas humanas, e o constitui Cabeça de toda a
humanidade, torna possível seu sacrifício redentor por todos.
617.
“Sua sanctissima passione in ligno crucis nobis
justificationem meruit – Por sua santíssima Paixão no madeiro da cruz,
mereceu-nos a justificação”, ensina o Concílio de Trento, sublinhando o caráter
único do sacrifício de Cristo como “princípio de salvação eterna”. A Igreja
venera a cruz cantando: “crux, ave, spes única – Salve, ó cruz, única esperança”.
NOSSA PARTICIPAÇÃO NO SACRIFÍCIO DE CRISTO
618.
A cruz é o único sacrifício de Cristo, “único
mediador entre Deus e os homens”. No entanto, pelo fato de que, em sua Pessoa
divina encarnada, “de certo modo uniu a si mesmo todos os homens”, ele oferece “a
todos os homens, do modo como Deus conhece, a possibilidade de serem associados
ao mistério pascal. Chama seus discípulos a “tomar sua cruz e a segui-lo”, pois
“sofreu por nós, deixou nos um exemplo, a fim de que sigamos seus passos. Quer associar
a seu sacrifício redentor aqueles mesmos que são os primeiros beneficiários.
Isto se realiza de maneira suprema em sua Mãe, associada mais intimamente do
que qualquer outro ao mistério de seu sofrimento redentor.
“Fora da Cruz não existe outra escada por onde subir ao céu”.
Resumindo:
619.
“Cristo morreu por nossos
pecados, segundo as Escrituras” (1 Cor 15, 3).
620.
Nossa salvação provém da
iniciativa de amor de Deus para conosco, pois “foi Ele que nos amou e enviou o
seu Filho como oferenda de expiação pelos nossos pecados” (1 Jo 4, 10). “Foi o
próprio Deus que, em Cristo, reconciliou o mundo consigo” (2 Cor 5, 19).
621.
Jesus ofereceu-se
livremente por nossa salvação. Este, dom, ele o significa e o realiza, por
antecipação, durante a última Ceia: “Isto é meu corpo, que é dado por vós” (Lc
22, 19).
622.
Nisto consiste a redenção
de Cristo: ele “não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em
resgate por muitos”(Mt 20, 2 8), isto é, “tendo amado os seus que estavam no
mundo, amou-os até o fim” (Jo 13, 1), para que sejais “libertados da vida fútil
que herdastes de vossos pais”.
623.
Por sua obediência de amor
ao Pai, “até a morte – e morte de cruz” (Fl 2, 8), Jesus realizou sua missão
expiatória do Servo sofredor, que justificará a muitos e levará sobre si
as suas transgressões”. (Is 53, 11).
PARÁGRAFO 3
JESUS CRISTO FOI SEPULTADO
624.
“Pela graça de Deus, Ele experimentou a morte em
favor de cada um” (Hb 2, 9). Em seu projeto de salvação, Deus dispôs
que seu Filho não somente morresse “pelos nossos pecados” (1 Cor 15,
3), mas também que “provasse a morte”, isto é, conhecesse o estado de morte, o
estado de separação entre sua alma e seu corpo, durante o tempo compreendido
entre o momento em que expirou na cruz e o momento em que ressuscitou. Este
estado do Cristo morto é o mistério do sepulcro e da descida aos Infernos. É o
mistério do Sábado Santo, no qual o Cristo depositado no túmulo manifesta o grande
descanso sabático de Deus depois da realização da salvação dos homens, que confere
paz ao universo inteiro.
CRISTO COM SEU CORPO NA SEPULTURA
625.
A permanência de Cristo no túmulo constitui o vínculo
real entre o estado passividade de Cristo antes da páscoa e seu atual estado
glorioso ressuscitado. É a mesma pessoa do “vivente” que pode dizer: “Estive
morto, mas agora estou vivo para todo o sempre” (Ap 1, 18):
“Deus [o Filho] não
impediu a morte de separar a alma do corpo, segundo a ordem necessária à
natureza, mas os reuniu novamente um ao outro pela Ressurreição, a fim de ser
ele mesmo, em sua pessoa, o ponto de encontro da morte e da vida, cessando nele
a decomposição da natureza, produzida pela morte, e tornando-se ele mesmo princípio
de reunião para as partes separadas”.
626.
Visto que o “Príncipe da vida” que mataram é o
mesmo “Vivente que ressuscitou”, necessariamente a Pessoa divina do Filho de
Deus continuou a assumir sua alma e seu corpo separados entre si pela morte:
“Pelo fato de, na
morte de Cristo, a alma ter sido separada da carne, a única pessoa não foi
dividida em duas pessoas, pois o corpo e a alma de Cristo existiram igualmente,
desde o início, na Pessoa do Verbo; e na morte, embora separados um do outro,
cada um permaneceu com a mesma e única Pessoa d o Verbo”.
“NÃO DEIXAR TEU SANTO VER A CORRUPÇÃO”
627.
A morte de Cristo foi uma morte verdadeira, porquanto
pôs fim à sua existência humana terrestre. Entretanto, devido à união que a pessoa
do Filho manteve com o seu corpo, não estamos diante de um cadáver como os
outros, porque “não era possível que ela o dominasse” (At 2, 24) e
porque, “a virtude divina preservou o corpo de Cristo da corrupção”. Sobre
Cristo pode-se dizer ao mesmo tempo: “Foi arrancado da terra dos vivos” (Is 53,
8) e “minha carne repousará na esperança. Não abandonarás minha alma no mundo dos
mortos nem deixarás o teu Santo conhecer a decomposição” (At 2, 26-27). A
ressurreição de Jesus “no terceiro dia” (1 Cor 15, 4; Lc 24,
46) foi a prova disso, pois, naqueles tempos, pensava-se que a corrupção se manifestava
a partir do quarto dia.
“SEPULTADOS COM CRISTO…”
628.
O Batismo, cujo sinal original e pleno é a imersão,
significa eficazmente a descida ao túmulo do cristão que morre para o pecado
com Cristo, em vista de uma vida nova. “Pelo batismo fomos sepultados com ele
na morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dos mortos pela ação gloriosa
do Pai, assim também nós vivamos uma vida nova” (Rm 6, 4).
Resumindo:
629.
Em benefício de todo homem,
Jesus experimentou a morte. Foi verdadeiramente o Filho de Deus feito
homem que morreu e que foi sepultado.
630.
Durante a permanência de
Cristo no túmulo, a sua Pessoa divina continuou a assumir tanto a sua alma como
o seu corpo, embora separados entre si pela morte. Por isso, o corpo de Cristo
morto não sofreu “decomposição” (At 13,37).