O Ícone que é uma perfeita catequese sobre a
Santíssima Trindade (texto e áudio)
Este maravilhoso ícone foi pintado com um espaço, um lugar para você, junto à Santíssima Trindade. Confira e deixe-se tocar pelo amor do Senhor através da Arte.
“O Senhor apareceu a Abraão nos carvalhos de Mambré, quando ele estava assentado à entrada de sua tenda, no maior calor do dia. Abraão levantou os olhos e viu três homens de pé diante dele. Levantou-se no mesmo instante da entrada de sua tenda, veio-lhes ao encontro e prostrou-se por terra (…) Abraão serviu aos peregrinos [pães, um novilho tenro, manteiga e leite], conservando-se de pé junto deles, sob a árvore, enquanto comiam” (cf. Gênesis 18, 1-8).
O ícone de Rublev
apresenta a cena com os três anjos, semelhantes na aparência, sentados a uma
mesa. A casa de Abraão aparece ao fundo, bem como um carvalho atrás dos três
convidados. Embora o ícone pinte esta cena do Antigo Testamento, Rublev usou o
episódio bíblico para fazer uma representação visual da Trindade que se encaixa
nas estritas diretrizes da Igreja Ortodoxa Russa.
O simbolismo da imagem é complexo e
procura resumir a doutrina teológica da Igreja sobre a Santíssima Trindade.
Primeiro: os três anjos são idênticos em
aparência, correspondendo à fé na unicidade de Deus em três Pessoas. No
entanto, cada anjo veste uma roupa diferente, trazendo à mente que cada pessoa
da Trindade é distinta. O fato de Rublev recorrer aos anjos para retratar a
Trindade é também um lembrete da natureza de Deus, que é espírito puro.
Os anjos são mostrados da esquerda
para a direita na ordem em que professamos nossa fé no Credo: Pai, Filho e
Espírito Santo. O primeiro anjo veste azul, simbolizando a natureza divina
de Deus, e uma sobrepeça púrpura, indicando a realeza do Pai. A casa que
aparece bem atrás dele aponta para o Pai, porque “na casa de meu Pai há muitas
moradas” (Jo 14, 2).
O segundo anjo é o mais familiar,
vestindo trajes tipicamente usados por Jesus na iconografia tradicional. A cor
carmesim simboliza a humanidade de Cristo, enquanto o azul é indicativo da sua
divindade. O carvalho atrás do anjo nos lembra a Árvore da Vida, no Jardim do
Éden, bem como a cruz sobre a qual o Cristo salvou o mundo do pecado de Adão.
O terceiro anjo veste o azul da
divindade e uma sobrepeça verde, cor que aponta para a terra e para a missão da
renovação do Espírito Santo. O verde é também a cor litúrgica usada em
Pentecostes na tradição ortodoxa e bizantina.
Rublev pintou a rocha atrás da
imagem do Espírito, dividida em duas partes para fazer referência à rocha
dividida pelo cajado de Moisés, fazendo a água viva brotar para as pessoas
sedentas (cf. Ex 17, 6). Cristo interpretou os fluxos de água viva
como o Espírito Santo (cf. Jo 7, 38). Mas assim como o Filho e o
Espírito são inseparáveis, também são recíprocos os seus símbolos: a árvore
verde acima do Filho também é um sinal da vida dada pelo Espírito, e a rocha
acima do Espírito é também um sinal do Cristo, a “rocha espiritual” (1Cor 10,
4).
O anjo que representa o Espírito
veste sua clâmide de modo que o braço esquerdo fique livre. Repare-se que o
anjo que representa o Filho veste a clâmide de modo que o braço direito fique
livre. Isso é uma referência ao ensinamento de S. Irineu de Lyon, que diz que o
Filho e o Espírito são as “duas mãos” do Pai, por meio das quais Ele opera
tudo.
Os dois anjos à direita do ícone
têm a cabeça ligeiramente inclinada em direção ao outro, ilustrando que o Filho
e o Espírito procedem do Pai.
No centro do ícone há uma mesa que
se assemelha a um altar. Colocado sobre a mesa, um cálice dourado contém o
bezerro que Abraão preparara para seus hóspedes; o anjo central parece estar
abençoando a refeição. A combinação dos elementos nos lembra o sacramento da
Eucaristia.
Ainda que seja a cabeça de um
novilho, segundo a história narrada em Gênesis, recordamos imediatamente o
Cordeiro a respeito do qual o Apocalipse diz o seguinte: o Cordeiro tem sido
imolado desde a origem do mundo.
O cosmo é representado pelo esboço
de uma tigela posta sobre o altar: nela está a cabeça de um novilho oferecido
como alimento, o sacrifício eucarístico para a vida do mundo. O fato de o altar
e a tigela representarem o cosmo é enfatizado pelas quatro quinas do altar e
pelo pequeno retângulo posto sobre ele, o que nos lembra os quatro pontos
cardeais.
Veja como a imagem do Filho (no
centro) e a do Espírito Santo (à direita) curvam suas cabeças de modo delicado
e gracioso para sua origem comum, o Pai (à esquerda), que, por sua vez, olha
fixamente para eles.
Há um movimento circular que começa
com os pés da figura da esquerda, os quais se estendem em direção à figura da
direita, perpassando os três personagens, completando assim o círculo e
mostrando que esse movimento é contínuo. Sempre aparece novamente, e o círculo
não é rompido. É a unidade, a comunhão, sem começo, meio ou fim.
Temos o movimento vertical do
templo e dos cetros. Estes designam a aspiração do criado pelo incriado, do
terreno pelo celeste, no qual todo movimento ascendente tem sua conclusão.
As asas ampliadas dos anjos
envolvem e cobrem tudo. O contorno interno de todas as asas, um azul delicado,
acentua a unidade e o caráter celeste da natureza divina. Um único Deus e três
Pessoas perfeitamente iguais. É isso o que expressam os cetros e tronos
idênticos. São sinais do mesmo poder real de que cada anjo é dotado. Suas
roupas são parecidas, embora a cor seja diferenciada para ressaltar a distinção
das Pessoas. A cor que possuem em comum é um azul intenso.
Muitas outras características dessa
obra-prima são dignas de nota. Os corpos dos anjos são quatorze vezes maiores
do que suas cabeças, em comparação com a diferença de tamanho entre corpo e
cabeça nos seres humanos (sete vezes). Esse prolongamento reforça seu caráter etéreo
e sobrenatural. As asas dos anjos e o modo esquemático como é tratado o campo
passam imediatamente a impressão de imaterialidade e ausência de peso. Os pés
dos anjos repousam sobre lajes, que nos lembram o túmulo vazio no ícone da
Ressurreição. Não há sombras. Nenhum elemento reflete a luz natural; ao
contrário, cada um emite sua própria luz.
Como todos os ícones bizantinos,
este usa perspectiva invertida — as coisas mais distantes são maiores ou, ao
menos, não diminuem —, a fim de abolir a distância e a profundidade em que tudo
desaparece no horizonte. Trata-se de um horizonte marcado pela plenitude do
ser, não pela diminuição dele, já que o horizonte aparece para uma perspectiva
egocêntrica. As figuras estão próximas e quase se levantam da tela, e isso é
feito para mostrar que Deus está aqui e em todo lugar. Necessariamente, a
perspectiva também convida o espectador, que é o “ponto de fuga”, a entrar na
pintura. Há uma “quarta cadeira” projetada e implícita à espera de você, para
que tome assento e ocupe um lugar na mesa dos Três.
Embora não seja a representação
mais direta da Santíssima Trindade, é uma das mais profundas jamais produzidas.
Permanece nas tradições ortodoxas e bizantinas a principal maneira de
representar o Deus Uno e Trino. Este ícone, de fato, é tido em alta estima
também na Igreja Católica Romana e é frequentemente usado por catequistas para
ensinar sobre o mistério da Trindade.
E a Trindade é, em suma, um
mistério – e sempre o será nesta terra. Às vezes, porém, nos são concedidos vislumbres
da vida divina, e o ícone de Rublev nos permite espreitar brevemente por trás
do véu.
Fonte: Aleteia e Padre
Paulo Ricardo