PARÁGRAFO 4
O
CRIADOR
279.
“No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,
1). Com essas solenes palavras inicia-se a Sagrada Escritura. O Símbolo da fé
retoma estas palavras, confessando Deus Pai Todo-Poderoso como “O Criador do
céu e da terra”, “de todas as coisas visíveis e invisíveis”. Por isso,
falaremos primeiro do Criador, em seguida de sua criação e, depois da queda no pecado,
do qual Jesus Cristo, o Filho de Deus, veio nos resgatar.
280.
A criação é o fundamento de “todos os
desígnios salvíficos de Deus”, “o começo da história da salvação”, que culmina
em Cristo. Inversamente, o mistério de Cristo é a luz decisiva sobre o mistério
da criação. Ele revela o propósito, em vista do qual, “no princípio, Deus criou
o céu e a terra” (Gn 1, 1): desde o início, Deus tinha em vista a
glória da nova criação em Cristo.
281.
Por isso as leituras da Vigília Pascal, celebração
da criação nova em Cristo, começam pelo relato da criação. Igualmente, na liturgia
bizantina, o relato da criação constitui sempre a primeira leitura das vigílias
das grandes festas do Senhor. Segundo o testemunho dos antigos, a instrução dos
catecúmenos para o Batismo seguia o mesmo caminho.
I.
A catequese sobre a criação
282.
A catequese sobre a criação reveste-se de capital
importância. Ela diz respeito aos próprios fundamentos da vida humana e cristã,
pois explicita resposta da fé cristã à pergunta elementar, feita pelos homens
de todas as épocas: “De onde viemos?” “Para onde vamos?” “Qual é a nossa
origem?” “Qual é o nosso fim?” “De onde vem e para onde vai tudo o que existe?”
As duas questões, da origem e a do fim, são inseparáveis. São decisivas para o
sentido e a orientação de nossa vida e de nosso agir.
283.
A questão das origens do mundo e do homem é objeto
de numerosas pesquisas científicas que enriqueceram magnificamente nossos
conhecimentos sobre a idade e as dimensões do cosmo, o devir das formas vivas,
o aparecimento do homem. Essas descobertas nos convidam a admirar tanto mais a
grandeza do Criador, a render-lhe graças por todas as suas obras, pela
inteligência e pela sabedoria que dá aos estudiosos e aos pesquisadores. Com
Salomão, estes podem dizer: “Ele me deu um conhecimento exato de tudo o que
existe, para eu entender a estrutura do mundo e as propriedades dos
elementos... pois a Sabedoria, artífice de todas as coisas, mo ensinou”
(Sb 7, 17-21).
284.
O grande interesse reservado a essas pesquisas é
fortemente estimulado por uma questão de outra ordem e que ultrapassa o âmbito
próprio das ciências naturais. Não se trata somente de saber quando e como
surgiu materialmente o cosmo, nem quando apareceu, mas, antes, de descobrir
qual é o sentido de tal origem: se ela é governada pelo acaso, um destino cego,
uma necessidade anônima, ou por um Ser transcendente, inteligente e bom,
chamado Deus. Se o mundo provém da sabedoria e da bondade de Deus, por que
existe o mal? De onde vem? Quem é o responsável por ele? Haverá como se
libertar dele?
285.
Desde o início, a fé cristã tem se confrontado com respostas
diferentes da sua, no que diz respeito à questão das origens. Assim, nas
religiões e nas culturas antigas, encontram-se numerosos mitos acerca das
origens. Certos filósofos afirmaram que tudo é Deus, que o mundo é Deus, ou que
o devir o mundo é o devir de Deus (panteísmo); outros afirmaram que o mundo é
uma emanação necessária de Deus, emanação esta que deriva dessa fonte e a ela volta;
outros ainda afirmaram a existência de dois princípios eternos – o Bem e o Mal,
a Luz e as Trevas – em luta permanente entre si (dualismo, maniqueísmo).
Segundo algumas dessas concepções, o mundo (pelo menos o mundo material) é mau,
produto de uma queda, e, portanto, deve ser rejeitado ou de superado (gnose);
outras admitem que o mundo tenha sido feito por Deus, mas à maneira de um
relojoeiro que, uma vez termina o serviço, o abandonou a si mesmo (deísmo); ainda
outras não aceitam nenhuma origem transcendente do mundo, vendo neste mero jogo
de uma matéria eu teria existido sempre (materialismo). Todas essas tentativas
dão prova da permanência e da universalidade da questão das origens. Esta busca
é própria do homem.
286.
Sem dúvida, a inteligência humana já pode encontrar
uma resposta para a questão das origens. Com efeito, a existência de Deus
Criador pode ser conhecida, com certeza, por meio de suas obras, graças à luz
da razão humana, ainda que, muitas vezes, este conhecimento seja obscurecido e
desfigurado pelo erro. Por isso a fé vem confirmar e iluminar a razão na
compreensão correta desta verdade: “Pela fé compreendemos que o universo foi
organizado pela palavra de Deus, de sorte que as coisas visíveis provêm daquilo
que não se vê” (Hb 11, 3).
287.
A verdade da criação é tão importante para toda a
vida humana que Deus, em sua ternura, quis revelar a seu povo tudo o que é útil
conhecer a este respeito. Para além do conhecimento natural, que todo homem
pode ter do Criador, Deus, progressivamente, revelou a Israel o mistério da
criação. Ele, que escolheu os patriarcas, que fez Israel sair do Egito e que, ao
escolher Israel, o criou e formou, revela-se como Aquele a quem pertencem todos
os povos da terra e a terra inteira, como o único que “fez o céu e a terra” (Sl 115,
15; 124, 8; 134, 3).
288.
Assim, a revelação da criação é inseparável da
revelação e da realização da Aliança de Deus, o Único, com o seu povo. A
criação é revelada como sendo o primeiro passo rumo a esta Aliança, como o
testemunho primeiro e universal do amor todo poderoso de Deus. Além disso, a
verdade da criação exprime com crescente vigor na mensagem dos profetas, na
oração dos salmos e da liturgia, na reflexão da sabedoria do povo eleito.
289.
Entre todas as palavras da Sagrada Escritura sobre
a criação, os três primeiros capítulos do Gênesis ocupam lugar único. Do ponto
de vista literário, esses textos podem ter diversas fontes. Os autores
inspirados os colocaram no começo da Escritura, de modo que eles exprimem, em sua
linguagem solene, as verdades da criação, de sua origem e de seu fim em Deus, de
sua ordem e de sua bondade, da vocação do homem, do drama do pecado e da
esperança da salvação. Lidas à luz de Cristo, na unidade da Sagrada Escritura e
na Tradição viva da Igreja, essas palavras são a fonte principal para a
catequese dos mistérios do “princípio”: criação, queda, promessa da salvação.
II.
A criação – Obra da Santíssima Trindade
290.
“No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1).
Três coisas são afirmadas nestas primeiras palavras da Escritura: o Deus eterno
iniciou tudo o que existe fora dele. Só ele é Criador (o verbo “criar” – em
hebraico “bara” sempre tem como sujeito Deus). Tudo o que existe
(expresso pela fórmula “o céu e a terra”) depende daquele que lhe dá o ser.
291.
“No princípio era a Palavra […] e a palavra era
Deus […] Tudo foi feito por meio dela, e sem ela nada foi feito” (Jo 1,
1-3). O Novo Testamento revela que Deus criou tudo por meio do Verbo Eterno,
seu Filho bem-amado. Nele “foram criadas todas as coisas, no céu e na terra
[…]. Tudo foi criado por ele e para ele. Ele existe antes de todas as coisas e
nele todas as coisas têm consistência” (Cl 1, 16-17). A fé da Igreja
afirma igualmente a ação criadora do Espírito Santo: Ele é o “doador da vida”, “o
Espírito Criador” (“Veni, Creator Spiritus”), a “Fonte de todo
bem”.
292.
Insinuada no Antigo Testamento, revelada na Nova
Aliança, a ação criadora do Filho e do Espírito Santo, inseparavelmente una à com
a do Pai, é claramente afirmada pela regra de fé da Igreja: “Só existe um Deus […]:
ele é o Pai, é Deus, é o Criador, é o Autor, é o Ordenador. Ele fez todas as
coisas por si mesmo, isso é, por seu Verbo e Sabedoria”, “pelo
Filho e pelo Espírito”, que são como “suas mãos”. A criação é obra comum da
Santíssima Trindade.
III.
“O mundo foi criado para glória de Deus”
293.
Eis uma verdade fundamental que a Escritura e a
Tradição não cessam de ensinar e de celebrar: “O mundo foi criado para a glória
de Deus”. Deus criou todas as coisas, explica São Boaventura, “non propter
gloriam augendam, sed propter gloriam manifestandam et propter gloriam suam
communicandam – não para aumentar a [sua] glória, mas para manifestar a
glória e para comunicara sua glória”. Pois Deus não tem outra razão para criar
a não ser seu amor e sua bondade: “Aperta manu clave amoris creaturae
prodierunt – Aberta a mão pela chave do amor, as criaturas surgiram”. O
Concílio Vaticano I explica:
“Este único e
verdadeiro Deus, por sua bondade e por sua ‘virtude onipotente’, não para
aumentar sua felicidade nem para adquirir sua perfeição, mas para manifestar essa
perfeição por meio dos bens que prodigaliza às criaturas, com vontade
plenamente livre, criou simultaneamente no início do tempo ambas as criaturas
do nada: a espiritual e a corporal”.
294.
A glória de Deus consiste em que se realizem esta
manifestação e esta comunicação de sua bondade, em vista das quais o mundo foi
criado. “Ele nos predestinou à adoção como filhos, por obra de Jesus Cristo, para
o louvor de sua graça gloriosa” (Ef 1, 5-6): “Pois a glória de Deus é o
homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus: se já a revelação de Deus por
meio da criação proporcionou a vida a todos os seres que vivem na terra, quanto
mais a manifestação do Pai pelo Verbo proporciona a vida àqueles que veem a
Deus”. O fim último da criação é que Deus, Criador de tudo, tornar-se-á “Tudo
em todos” (1 Cor 15, 28), procurando, ao mesmo tempo, a sua
glória e a nossa felicidade”.
IV.
O mistério da criação
DEUS CRIA POR SABEDORIA E POR AMOR
295.
Cremos que Deus criou o mundo segundo a sua
sabedoria. O mundo não é produto de uma necessidade qualquer, do destino cego
ou do acaso. Cremos que o mundo procede da vontade livre de Deus, que quis
fazer as criaturas participarem de seu ser, de sua sabedoria e de sua bondade: “Porque
criaste todas as coisas. Por tua vontade é que elas existem e foram criadas”
(Ap 4, 11). “Como são numerosas, Senhor, tuas obras! Tu fizeste com
sabedoria!” (Sl 104, 24). “O Senhor é bom para todos, compassivo com todas
as suas criaturas” (Sl 145, 9).
DEUS CRIA “DO NADA”
296.
Cremos que Deus não precisa de nada preexistente
nem de nenhuma ajuda para criar. A criação também não é uma emanação necessária
da substância divina. Deus cria livremente “do nada”:
“Que haveria de
extraordinário se Deus tivesse tirado o mundo de uma matéria preexistente? Um
artífice humano, quando se lhe dá um material, faz dele tudo o que quer. O
poder de Deus, no entanto, manifesta-se precisamente quando parte do nada para
fazer tudo o que quer”.
297.
A fé na criação a partir ‘do nada’ é atestada na
Escritura como uma verdade plena de promessa e de esperança. Assim a mãe dos
sete filhos os encoraja ao martírio:
“Não sei como viestes
e aparecer no meu ventre; nem fui eu quem vos deu o espírito e a vida. Também
não fui eu quem deu forma aos membros de cada um de vós. Por isso, o Criador do
mundo, que formou o ser humano no seu nascimento e dá origem a todas as coisas,
ele, na sua misericórdia, vos restituirá o espírito e a vida. E isto porque,
agora, vos sacrificais a vós mesmos, por amor às suas leis […]. Eu te suplico,
filho, contempla o céu e a terra e o que neles existe. Reconhece que Deus os
fez do que não existia, e que assim também se originou a humanidade” (2
Mac 7, 22-23.28).
298.
Visto que Deus pôde criar do nada, pelo Espírito
Santo, dar a vida da alma a pecadores, criando neles um coração puro, e aos falecidos
a vida do corpo, pela ressurreição. Ele, “que vivifica os mortos e chama à
existência o que antes não existia” (Rm 4, 17). Visto que, por sua
Palavra, pôde fazer resplandecer a luz a partir das trevas, pode também dar à
luz da fé àqueles que a desconhecem.
DEUS CRIA UM MUNDO ORDENADO E BOM
299.
Por Deus criar com sabedoria, a criação tem uma ordem:
“Tu dispuseste com medida, número e peso” (Sb 11, 20). Feita, no Verbo
eterno e por meio dele, “imagem do Deus invisível” (Cl 1, 15), a
criação está destinada, dirigida ao homem, imagem de Deus, chamado a uma
relação pessoal com Ele. Nossa inteligência, por particular da luz do intelecto
divino, pode entender o que Deus nos diz pela por sua criação, sem dúvida não
sem grande esforço e em espírito de humildade e de respeito diante do Criador e
de sua obra. Originada da bondade divina, a criação participa desta bondade: “E
Deus viu que era bom, […] e era muito bom” (Gn 1, 4. 10. 12. 18. 21.
31). Pois a criação é querida por Deus como um dom dirigido ao homem, como
herança que lhe é destinada e confiada. Repetida vezes, a Igreja teve de
defender a bondade da criação, inclusive do mundo material.
DEUS TRANSCENDE A CRIAÇÃO E ESTÁ PRESENTE NELA
300.
Deus é infinitamente maior que todas as suas obras:
“Sobre os céus se eleva a tua majestade!” (Sl 8, 2), “não se pode medir
sua grandeza” (Sl 145, 3). Por ser o Criador soberano e livre, causa
primeira de tudo o que existe, Ele está presente no mais íntimo das suas
criaturas: “Nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17, 28). Segundo as
palavras de Santo Agostinho, ele é “superior summo meo et interior
intimo meo — maior do que há de maior em mim e mais íntimo do que há
de mais íntimo em mim”.
DEUS MANTÉM E SUSTENTA A CRIAÇÃO
301.
Depois da criação, Deus não abandona sua criatura a
ela mesma. Não somente lhe dá o ser e a existência, mas também a sustenta a cada
instante no ser, lhe dá o dom de agir e a conduz a seu termo. Reconhecer esta
dependência completa em relação ao Criador é uma fonte de sabedoria e
liberdade, alegria e confiança:
“Sim, amas tudo o
que existe e não despesas nada que fizeste; porque, se odiasse alguma coisa,
não a terias criado. De mesma forma, como poderia alguma coisa substituir, se
não a tivesses querido? Ou como poderia ser mantida na existência, se por ti
não tivesse sido chamada? A todos, porém, tratas com bondade, porque tudo é
teu, Senhor, amigo da vida” (Sb 11, 24-26).
V.
Deus realiza o seu projeto: a divina providência
302.
A criação tem a bondade e sua perfeição próprias, porém
não saiu completamente acabada das mãos do Criador. Ela é criada “em processo
de caminhada” (“in statu viae”) para uma perfeição última a
ser ainda atingida, para a qual Deus a destinou. Chamamos divina de providência
às disposições pelas quais Deus conduz sua criação para esta perfeição:
“Deus conserva e
governa com sua providência tudo o que criou; ela se estende “com vigor de uma extremidade
à outra, e com suavidade governa todas as coisas” (Sb 8, 1). Pois “Tudo
está nu e descoberto aos olhos daquele a quem devemos prestar contas” (Hb 4,
13), mesmo os atos dependentes da ação livre das criaturas”.
303.
O testemunho da Escritura é unânime: a solicitude
da divina providência é concreta e direta, cuida de tudo, desde as mínimas
coisas até os grandes acontecimentos do mundo e da história. Com vigor, os
livros sagrados afirmam a soberania absoluta de Deus no curso dos
acontecimentos: “Nosso Deus está nos céus, realiza tudo quanto quer”
(Sl 115, 3); e de Cristo se diz: “aquele que abre e ninguém fecha, e que fecha
e ninguém abre” (Ap 3, 7); “São muitos os projetos no coração humano, mas
é a vontade do Senhor que permanece” (Pr 19, 21).
304.
Assim se nota que o Espírito Santo, autor principal
da Escritura, atribui algumas ações a Deus, sem mencionar causas segundas. Esta
não é uma “maneira de falar” primitiva, mas uma forma profunda de lembrar o
primado de Deus e seu senhorio absoluto sobre a história e o mundo e de assim
educar a confiança nele. A oração dos Salmos é a grande escola desta confiança.
305.
Jesus pede uma entrega filial à providência do Pai Celeste,
que cuida das mínimas necessidades de seus filhos: “Portanto, não vivais
preocupados, dizendo: ‘Que vamos comer? Que vamos beber? Como nos vamos vestir?’
Os pagãos é que vivem procurando todas essas coisas. Vosso Pai que está nos
céus sabe que precisais de tudo isso. Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus
e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt
6, 31-33).
A PROVIDÊNCIA E AS CAUSAS SEGUNDAS
306.
Deus é o Senhor soberano dos seus desígnios. Contudo,
para que eles se realizem, serve-se também da colaboração das criaturas. Isso
não é sinal de fraqueza, mas da grandeza e da bondade do Deus Todo-Poderoso. De
fato, Deus dá às suas criaturas não somente o existir, mas também a dignidade de
agirem elas mesmas, de serem causas e princípios umas das outras e de assim cooperarem
no cumprimento de seu desígnio.
307.
Aos homens, Deus concede até poderem participar
livremente de sua providência, confiando-lhes a responsabilidade de “submeter”
a terra e dominá-la. Deus assim concede aos homens serem causas inteligentes e
livres, para completar a obra da Criação, aperfeiçoar sua harmonia para o próprio
bem e de seus próximos. Cooperadores muitas vezes inconscientes da vontade
divina, os homens podem entrar deliberadamente no plano divino, por suas ações,
por suas orações e também por seus sofrimentos. Tornam-se, então, plenamente “cooperadores
de Deus” (1 Cor 3, 9) e do seu Reino.
308.
Eis uma verdade inseparável da fé em Deus Criador:
Deus age em todo o agir de suas criaturas. Ele é a causa primeira, que age nas
causas segundas e por meio delas: “Na verdade, é Deus que produz em vós tanto o
querer como o fazer, conforme o seu agrado” (Fl 2, 13). Longe de
diminuir a dignidade da criatura, esta verdade a realça. Tirada do nada pelo
poder, pela sabedoria, pela bondade de Deus, a criatura nada pode se for separada
de sua origem, pois “a criatura sem o Criador se esvai”; menos ainda pode atingir
seu fim último sem a ajuda da graça.
A PROVIDÊNCIA E O ESCÂNDALO DO MAL
309.
Se Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do mundo
ordenado e bom, cuida de todas as suas criaturas, por que então o mal existe? Para
esta pergunta tão premente quanto inevitável, tão dolorosa quanto misteriosa,
não há uma resposta rápida. O conjunto da fé cristã constitui a resposta a esta
pergunta: a bondade da criação; o drama do pecado; o amor paciente de Deus que se
antecipa ao homem por suas Alianças, pela Encarnação redentora de seu Filho,
pelo dom do Espírito, pelo congraçamento da Igreja, pela força dos sacramentos,
pelo chamado a uma vida bem-aventurada à qual as criaturas livres são convidadas
antecipadamente a assentir, mas da qual podem, por um terrível mistério, abrir
mão também antecipadamente. Não há nenhum elemento da mensagem cristã que
não seja, sob certo aspecto, uma resposta à questão do mal.
310.
Mas, por que Deus não criou um mundo tão perfeito
que nele não possa existir mal algum? Segundo seu poder infinito, Deus sempre
poderia criar algo melhor. Todavia, em sua sabedoria e bondade infinitas, Deus
quis livremente criar um mundo “em processo de caminhada” para sua perfeição
última. Este devir permite, no desígnio de Deus, juntamente com o aparecimento
de determinados seres, o desaparecimento de outros, juntamente com o mais perfeito,
também o menos perfeito; juntamente com as construções da natureza, também as destruições.
Juntamente com o bem físico, até que a criação tenha atingido sua perfeição.
311.
Os anjos e os homens, criaturas inteligentes e
livres, devem caminhar para seu destino último por opção livre e amor
preferencial. Podem, no entanto, desviar-se. E, de fato, pecaram. Foi assim que
o mal moral, incomensuravelmente mais grave do que o mal físico. Deus não
é, de modo algum, nem direta nem indiretamente, a causa do mal moral. Todavia o
permite, respeitando a liberdade de sua criatura, e, misteriosamente, sabe auferir
o bem:
“Pois o Deus Todo-Poderoso
[…], por ser soberanamente bom, nunca deixaria qualquer mal existir em suas
obras se não fosse bastante poderoso e bom para fazer resultar do mal o bem”.
312.
Assim, com o passar do tempo, pode-se descobrir que
Deus, em sua providência toda poderosa, pode extrair um bem das consequências de
um mal, mesmo moral, causado por suas criaturas: “não fostes vós que me
enviastes para cá, mas Deus; […] Vós planejastes fazer o mal contra mim. Deus,
porém, converteu-o em bem: […] exaltar-me para dar vida a um povo numeroso”
(Gn, 45, 8; 50, 20). Do maior mal moral jamais cometido, a saber, a
rejeição e homicídio do Filho de Deus, causado pelos pecados de todos os
homens, Deus, pela superabundância de sua graça, tirou o maior dos bens: a
glorificação de Cristo e a nossa Redenção. Com isso, porém, o mal não se converte
em um bem.
313.
“Sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que
amam a Deus” (Rm 8, 28). O testemunho dos santos não cessa de confirmar
esta verdade:
Santa Catarina de
Sena diz “àqueles que se escandalizam e se revoltam com o que lhes acontece”: “Tudo
procede do amor, tudo está ordenado à salvação do homem, Deus não faz nada que
não seja para esta finalidade”.
Santo Tomás More,
pouco antes de seu martírio, consola sua filha: “Não pode acontecer nada que
Deus não tenha querido. Ora, tudo o que ele quer, por pior que possa nos pareceres,
é o que há de melhor para nós”.
Lady Juliana de
Norwich: “Aprendi, portanto, pela graça de Deus, que era preciso apegar-me com
firmeza à fé e crer, com não menor firmeza, que todas as coisas irão bem […]”. “Tu
mesmo verás que qualquer tipo de circunstância servirá para o bem – Thou
shalt see thyself that all MANNER of thing shall be well”.
314.
Cremos firmemente que Deus é o Senhor do mundo e da
história. Contudo os caminhos de sua providência nos são, muitas vezes,
desconhecidos. Só no final, quando acabar o nosso conhecimento parcial, quando virmos
Deus “face a face” (1 Cor 13, 12), teremos pleno conhecimento dos caminhos
pelos quais, mesmo por meio dos dramas do mal e do pecado, Deus terá conduzido sua
criação até o descanso desse Sábado definitivo, em vista do qual criou o céu e
a terra.
Resumindo:
315.
Na criação do mundo e dos homens, Deus colocou o primeiro e universal
testemunho de seu amor todo poderoso e de sua sabedoria, o primeiro anúncio de
seu “desígnio benevolente”, o qual encontra sua meta na nova criação em Cristo.
316.
Embora a obra da criação seja particularmente atribuída ao Pai, é
igualmente verdade de fé que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são o único e
indivisível princípio da criação.
317.
Só Deus criou o universo, livremente, diretamente, sem nenhuma ajuda.
318.
Nenhuma criatura tem o poder infinito que é necessário para “criar” no
sentido próprio da palavra, isto é, produzir e dar o ser àquilo que não o tinha
de modo algum (chamar à existência “ex nihilo” – “do nada”).
319.
Deus criou o mundo para manifestar e para comunicar sua glória. Que suas criaturas
participem de sua verdade, de sua bondade e de sua beleza é a glória para a
qual Deus as criou.
320.
Deus, que criou o universo, o mantém na existência por seu Verbo; “Ele sustenta
o universo com a sua palavra poderosa” (Hb 1, 3), e por seu Espírito Criador
que dá a vida.
321.
A Divina Providência são as disposições pelas quais Deus conduz com
sabedoria e amor todas as criaturas até seu fim último.
322.
Cristo nos convida à entrega filial à Providência de nosso Pai celeste. O
Apóstolo São Pedro lembra: “Lançai sobre ele toda a vossa preocupação, porque é
ele que cuida de vós” (1 Pe 5, 7).
323.
A Providência divina age também por meio da ação das criaturas. Aos
seres humanos, Deus concede cooperar livremente para seus desígnios.
324.
A permissão divina do mal físico e do mal moral é um mistério, que Deus ilumina
por seu Filho, Jesus Cristo, morto e ressuscitado para vencer o mal. A fé nos dá
a certeza de que Deus não permitiria o mal se do próprio mal não tirasse o bem,
por caminhos que só conhecemos plenamente na vida eterna.
PARÁGRAFO 5
O
CÉU E A TERRA
325.
O Símbolo dos Apóstolos professa que Deus é “o Criador
do céu e da terra”, e o Símbolo niceno-constantinopolitano explicita: “… do universo
visível e invisível”.
326.
Na Sagrada Escritura, a expressão “céu e terra”
significa tudo aquilo que existe, a criação inteira. Indica também o nexo no interior
da criação, que, ao mesmo tempo, une e distingue céu e terra. A “terra” é o
mundo dos homens. O “céu” ou os “céus” pode designar o firmamento, mas também o
“lugar” próprio de Deus – “vosso Pai nos céus” (Mt 5, 16) – e, por consequência,
também o “céu” que é a glória escatológica. Enfim, a palavra “céu” indica o “lugar”
das criaturas espirituais – os anjos – que estão ao redor de Deus.
327.
A profissão de fé do quarto Concílio de Latrão
afirma que Deus, “desde o princípio do tempo, criou do nada ao mesmo tempo uma
e outra criatura, a espiritual e a corporal, isto é, os anjos e o mundo
terrestre. Depois criou a criatura humana, que participa das duas primeiras,
formada, como é, de espírito e corpo”.
I.
Os anjos
A EXISTÊNCIA DOS ANJOS UMA VERDADE DE FÉ
328.
A existência dos seres espirituais, não corporais,
que a Sagrada Escritura chama habitualmente de anjos, é uma verdade de fé. O
testemunho da Escritura a respeito é tão claro quanto a unanimidade da Tradição.
QUEM SÃO OS ANJOS?
329.
Santo Agostinho diz a respeito deles: “Angelus
officii nomen est, non naturae. Quaeris nomen naturae, spiritus est;
quaeris officium, angelus est; ex eo quod est, spiritus est, ex eo quod agit,
angelus – Anjo (mensageiro) é designação de encargo, não de natureza. Se
perguntares pela designação da natureza, é um espírito; se perguntares pelo
encargo, é um anjo: é espírito por aquilo que é, é um anjo por aquilo que faz”.
Por todo o seu ser, os anjos são servidores e mensageiros de Deus. Porque
contemplam “sem cessar a face do meu Pai que está nos céus” (Mt 18,
10), são heróis fortes que executam “suas ordens, obedecendo sua palavra”
(Sl 103, 20).
330.
Como criaturas puramente espirituais, são dotados
de inteligência e de vontade: são criaturas pessoais e imortais. Superam em
perfeição todas as criaturas visíveis. Disto dá testemunho o brilho de sua glória.
CRISTO “COM TODOS OS SEUS ANJOS”
331. Cristo é o centro do mundo angélico. Os anjos são seus: “Quando o Filho do homem vier em sua glória acompanhado de todos os anjos…” (Mt 25, 31). São sus, porque foram criados por e para Ele: “pois é nele que foram criadas todas as coisas, no céu e na terra, os seres visíveis e os invisíveis, tronos, dominações, principados, potestades; tudo foi criado por ele e para ele” (Cl 1, 16). São seus, mais ainda, porque Ele os fez mensageiros de seu projeto de salvação. “Não são todos eles espíritos servidores, enviados a serviço daqueles que deverão herdar a salvação?” (Hb 1, 14).
332.
Eles aí estão, desde a criação e ao longo de toda a
história da salvação, anunciando, de longe ou de perto, esta salvação e
servindo ao desígnio divino de sua realização: fecham o paraíso terrestre,
protegem Lot, salvam Agar e seu filho, seguram a mão de Abraão, comunicam a lei
por seu ministério, conduzem o povo de Deus, anunciam nascimentos e vocações,
assistem os profetas, citando-se apenas alguns exemplos. Por fim, é o anjo
Gabriel que anuncia o nascimento do Precursor e o do próprio Jesus.
333.
Desde a encarnação até a ascensão, a vida do Verbo
Encarnado é cercada da adoração e do serviço dos anjos. Quando Deus introduziu
o “Primogênito no mundo, Deus diz: Todos os anjos devem adorá-lo (Hb 1,
6). O canto de louvor deles ao nascimento de Cristo não cessou no louvor da
Igreja: “Glória a Deus…” (Lc 2, 14). Os anjos protegem a infância de
Jesus, servem a Jesus no deserto, o reconfortam na agonia, quando ele poderia,
por si mesmo, ter se salvado das mãos dos inimigos como outrora Israel. São
ainda os anjos que “evangelizam”, anunciando a Boa Nova da Encarnação e da
Ressurreição de Cristo. No retorno de Cristo, que eles anunciam, estarão lá a serviço
de seu juízo.
OS ANJOS NA VIDA DA IGREJA
334.
Do mesmo modo, a vida da Igreja se beneficia da
ajuda misteriosa e poderosa dos anjos.
335.
Na Liturgia, a Igreja associa aos anjos para adorar
o Deus três vezes Santo. Ela invoca sua assistência (assim em “In Paradisum
deducant te Angeli... – Para o Paraíso te levem os anjos, da Liturgia dos defuntos,
ou ainda no “hino dos querubins” da liturgia bizantina). Além disso, festeja
mais particularmente a memória de certos anjos (São Miguel, São Gabriel, São
Rafael e os Anjos da Guarda).
336.
Desde o início até a morte, a vida humana é cercada
pela proteção dos anjos e por sua intercessão. “Cada fiel é ladeado por um anjo
como protetor e pastor para conduzi-lo à vida”. Ainda aqui na terra, a vida
cristã participa, na fé, da sociedade bem-aventurada dos anjos e dos homens,
unidos em Deus.
II.
O mundo visível
337.
Foi Deus mesmo quem criou o mundo visível em toda a
sua riqueza, diversidade e ordem. A Escritura apresenta a obra do Criador
simbolicamente como uma sequência de seis dias “de trabalho” divino, que
terminam com o “descanso” do sétimo dia. O texto sagrado ensina, a respeito da
criação, verdades reveladas por Deus para a nossa salvação, que permitem “reconhecer
a natureza profunda da criação, seu valor e sua finalidade, que é a glória de
Deus”.
338.
Não existe nada que não
deva sua existência a Deus criador. O mundo
começou quando foi tirado do nada pela Palavra de Deus. Todos os seres
existentes, toda a natureza, toda a história humana têm suas raízes neste
acontecimento primordial: a própria gênese pela qual o mundo foi constituído e
o tempo começou.
339.
Cada criatura possui
bondade e perfeição próprias. Para
cada uma das obras dos “seis dias” se diz: “E Deus viu que isto era bom”. “Pela
própria condição da criação, todas as coisas são dotadas de fundamentos
próprio, verdade, bondade, leis e ordens específicas”. As diferentes criaturas,
queridas em seu próprio ser, refletem, cada uma a seu modo, um raio da
sabedoria e da bondade infinitas de Deus. Por isso o homem deve respeitar a
bondade própria de cada criatura, a fim de evitar o uso desordenado das coisas,
que menospreze o Criador e acarrete consequências nefastas para os homens e o
meio ambiente.
340.
A interdependência das
criaturas é querida por Deus. O sol e a
lua, o cedro e a pequena flor, a águia e o pardal: as inúmeras diversidades e
desigualdades significam que nenhuma criatura se basta a si mesma, que só
existem em dependência recíproca, para completarem-se mutuamente, a serviço
umas das outras.
341.
A beleza do universo: A ordem e a harmonia do mundo criado resultam da diversidade dos
seres e das relações que existem entre eles. O homem as descobre
progressivamente como leis da natureza. Elas despertam a admiração dos sábios.
A beleza da criação reflete a infinita beleza do Criador. Ela deve inspirar o
respeito e a submissão da inteligência do homem e de sua vontade.
342.
A hierarquia das criaturas é expressa pela ordem dos “seis dias”, que vai do menos perfeito
para o mais perfeito. Deus ama todas as suas criaturas, cuida de cada uma, até
dos pássaros. No entanto, Jesus diz: “Vós valeis mais do que muitos pardais”
(Lc 12, 7), ou ainda: “Um ser humano vale muito mais do que uma ovelha” (Mt 12,
12).
343.
O homem é a obra-prima da criação. A narração
bíblica exprime isto, distinguindo nitidamente a criação do homem da criação
das outras criaturas.
344.
Existe solidariedade entre todas as
criaturas pelo fato de terem todas o mesmo Criador e de todas estarem ordenadas
à sua glória.
Louvado sejas, meu
Senhor.
Com todas as tuas
criaturas,
Especialmente o
senhor irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos
ilumina.
Louvado sejas, meu
Senhor,
pela irmã água,
Que é muito útil e
humilde
É preciosa e
casta...
Louvado sejas, meu
Senhor,
Por nossa irmã, a
mãe Terra,
Que nos sustenta e
governa,
E produz frutos
diversos
E coloridas flores
e ervas.
Louvai e bendizei a
meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E o servi com
grande humildade.
345.
O sábado – fim da obra dos “seis dias”. O texto sagrado diz que “Deus
concluiu, no sétimo dia, a obra que tinha feito”, e assim “o céu e a terra
foram terminados”. No sétimo dia, Deus “repousou”, e santificou e abençoou este
dia (Gn 2, 1-3). Estas palavras inspiradas são ricas de ensinamentos salutares:
346.
Na criação, Deus depositou um fundamento e leis que
permanecem estáveis, nos quais o crente pode se apoiar com confiança e que para
ele serão o sinal e a garantia da fidelidade inabalável da Aliança de Deus. Por
sua parte, o homem deverá se conservar fiel a este fundamento e respeitar as
leis que o Criador inscreveu nele.
347.
A criação está em função do sábado, portanto, do
culto e da adoração de Deus. O culto está inscrito na ordem da criação. – “Operi Dei
nihil preponatur – Nada se anteponha à obra de Deus” – diz a regra de
São Bento, indicando assim a ordem correta das preocupações humanas.
348.
O sábado constitui o coração da lei de Israel. Observar
os mandamentos é corresponder à sabedoria e à vontade de Deus, expressa em sua
obra da criação.
349.
O oitavo dia. Para nós, porém, nasceu um dia
novo: o dia da ressurreição de Cristo. O sétimo dia encerra a primeira criação.
O oitavo dia dá início à nova criação. Assim, a obra da criação culmina na obra
maior da redenção. A primeira criação encontrou seu sentido e seu ponto culminante
na nova criação em Cristo, cujo esplendor ultrapassa o da primeira.
Resumindo:
350.
Os anjos são criaturas
espirituais que glorificam a Deus sem cessar e servem os seus desígnios salvíficos
em relação às demais criaturas: “Ad omnia bona nostra cooperantur angeli
– Os anjos cooperam para todos os nossos bens”.
351.
Os anjos cercam a Cristo,
seu Senhor. Servem-no particularmente, no cumprimento de sua missão salvífica para
com os homens.
352.
A Igreja venera os anjos
que a ajudam, em sua peregrinação terrestre, e protegem cada ser humano.
353.
Deus quis a diversidade de
suas criaturas e a bondade própria delas, sua interdependência e ordem.
Destinou todas as criaturas materiais ao bem do gênero humano. O homem, e por
meio dele a criação inteira, destina-se à glória de Deus.
354.
Respeitar as leis
inscritas na criação e as relações que derivam da natureza das coisas é
princípio de sabedoria e fundamento da moral.
PARÁGRAFO 6
O
HOMEM
355.
“Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de
Deus o criou. Homem e mulher, ele os criou” (Gn 1, 27). O homem ocupa
um lugar único na criação: ele é “à imagem de Deus” (I); em sua própria
natureza une o mundo espiritual e o mundo material (II); é criado “homem e
mulher” (III); Deus estabeleceu em sua amizade (IV).
I.
“À imagem de Deus”
356.
De todas as criaturas visíveis, só o homem é “capaz
de conhecer e amar o seu Criador”; ele é “a única criatura na terra que Deus
quis por si mesma”; só ele é chamado a compartilhar, pelo conhecimento e pelo
amor, a vida de Deus. Para este fim o homem foi criado, e aí reside a razão
fundamental de sua dignidade:
“Que motivo vos fez
constituir o homem em dignidade tão grande? O amor inestimável pelo qual
enxergastes em vós mesmo vossa criatura, e vos apaixonastes por ela; pois foi
por amor que a criastes, foi por amor que lhe destes um ser capaz de degustar vosso
Bem eterno”.
357.
Por ser à imagem de Deus, o indivíduo humano tem a
dignidade de pessoa: ele não é apenas alguma coisa, mas alguém. É
capaz de se conhecer, de se possuir e de doar livremente e de entrar em
comunhão com outras pessoas. Ele é chamado, por graça, a uma aliança com seu
Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor que ninguém mais pode dar em
seu lugar.
358.
Deus criou tudo para o homem, mas o homem foi
criado para servir e amar a Deus e oferecer-lhe toda a criação:
“Quem é, pois, o
ser que vai vir à existência cercado de tal consideração? É o homem, grande e
admirável figura viva, mais precioso aos olhos de Deus do que criação inteira:
é o homem, é por ele que existem o céu e a terra e o mar e a totalidade da
criação, à salvação dele, Deus atribuiu tamanha importância, que nem sequer
poupou seu Filho único em seu favor. Deus, de fato, não cessa de tudo empreender,
para fazer o homem subir até ele e sentar-se à sua direita”.
359.
“Na realidade, o mistério do homem só se torna
verdadeiramente claro no mistério do Verbo Encarnado”:
“São Paulo nos ensina
que dois homens estão na origem do gênero humano: Adão e Cristo. […] “O
primeiro Adão”, diz ele, “foi criado como um ser humano que recebeu a vida; o
segundo é um ser espiritual que dá a vida.” O primeiro foi criado pelo segundo,
de quem recebeu a alma que o faz viver. […] O segundo Adão estabeleceu sua
imagem no primeiro Adão, quando o modelou. Assim se revestiu da natureza deste
último e dele recebeu o nome, a fim de não deixar perder aquilo que havia feito
à sua imagem. Primeiro Adão, segundo Adão: o primeiro começou, o segundo não
acabará. O segundo é verdadeiramente o primeiro, como ele mesmo disse: “Eu sou
o Primeiro e o Último”.
360.
Graças à origem comum, o gênero humano forma
uma unidade, pois Deus “de um só homem, Ele fez toda a espécie humana” (At 17,
26):
“Maravilhosa visão,
que nos faz contemplar o gênero humano na unidade de sua origem em Deus […]; na
unidade de sua natureza, composta igualmente em todos de um corpo material e de
uma alma espiritual; na unidade de seu fim imediato e de sua missão no mundo;
na unidade de sua morada – a terra – cujos
bens todos os homens, por direito natural, podem usar para sustentar e
desenvolver a vida; na unidade de seu fim sobrenatural: Deus mesmo, ao qual todos
devem tender; na unidade dos meios para atingir este fim; […] na unidade do seu
resgate, realizadod em favor de todos por Cristo”.
361.
“Esta lei de solidariedade humana e de caridade”,
sem excluir a rica variedade de pessoas, culturas e povos, nos garante que todos
os homens são verdadeiramente irmãos.
II.
“Corpore et anima unus” (Uno de alma e corpo)
362.
A pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser
ao mesmo tempo corporal e espiritual. O relato bíblico expressa esta realidade com
uma linguagem simbólica, ao afirmar que “O Senhor Deus formou o homem com o pó do
solo, soprou-lhe nas narinas um sopro da vida, e ele tornou-se um ser vivente” (Gn 2,
7). Portanto, o homem, em sua totalidade, é querido por Deus.
363.
Muitas vezes, na Sagrada Escritura, o termo alma
designa a vida humana ou a pessoa humana inteira. Entretanto,
designa também o que há de mais íntimo no homem e o que há nele de maior valor,
aquilo que mis particularmente o faz ser imagem de Deus: “alma”
significa o princípio espiritual no homem.
364.
O corpo do homem participa na dignidade
da “imagem de Deus”: é corpo humano precisamente por ser animado pela alma
espiritual, e a pessoa humana na sua totalidade é que é destinada a tornar-se,
no Corpo (Místico) de Cristo, templo do Espírito:
“Unidade de corpo e
de alma, por sua própria condição corporal, sintetiza em si os elementos do
mundo material, que nele assim atingem sua plenitude e apresentam livremente ao
Criador uma voz de louvor. Portanto, não é lícito ao homem desprezar a vida
corporal; ao contrário, ele deve estimar e honrar seu corpo, porque criado por
Deus e destinado à ressurreição no último dia”.
365.
A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se
deve considerar a alma como a “forma” do corpo; ou seja, graças à alma espiritual,
o corpo constituído de matéria é um corpo humano e vivo. O espírito e a matéria
no homem não são duas naturezas unidas, mas sua união forma uma única natureza.
366.
A Igreja ensina que cada alma espiritual é diretamente
criada por Deus – não é “produzida” pelos pais – e é imortal: ela não perece no
momento de sua separação do corpo na morte e se unirá novamente ao corpo na
ressurreição final.
367.
Ocorre, por vezes, que a alma aparece distinta do
espírito. Assim, São Paulo reza para que todos o nosso ser, “o espírito, a alma
e o corpo”, seja guardado irrepreensível para a vinda de nosso Senhor
(1 Ts 5, 23). A Igreja ensina que esta distinção não introduz uma
dualidade na alma. “Espírito” significa que o homem é ordenado, desde a sua
criação para o seu fim sobrenatural, e que sua alma é capaz de ser elevada
gratuitamente à comunhão com Deus.
368.
A tradição espiritual da Igreja insiste também
no coração, no sentido bíblico de “profundidade do ser” (“nas
entranhas”: Jr 31, 33), onde a pessoa se decide ou não por Deus.
III.
“Homem e mulher os criou”
IGUALDADE E DIFERENÇA QUERIDAS POR DEUS
369.
O homem e a mulher são criados, isto é, são queridos
por Deus, por um lado, em perfeita igualdade como pessoas humanas e, por outro,
em seu respectivo ser de homem e de mulher. “Ser homem”, “ser mulher” é uma
realidade boa e querida por Deus: o homem e a mulher têm uma dignidade insuperável
que lhes vem diretamente de Deus, seu Criador. O homem e a mulher são criados
em idêntica dignidade, “à imagem de Deus”. Em seu “ser homem” e em seu “ser
mulher” refletem a sabedoria e a bondade do Criador.
370.
Deus não é, de modo algum; à imagem do homem. Não é
nem homem nem mulher. Deus é puro espírito, não havendo nele lugar para a diferença
dos sexos. No entanto, as “perfeições” do homem e da mulher refletem qualquer algo
da infinita perfeição de Deus: as de uma mãe e as de um pai e de um esposo.
“UM PARA O OUTRO” – “UMA UNIDADE A DOIS”
371.
Criados conjuntamente, Deus quer o homem
e a mulher um para o outro. A Palavra de Deus nos dá a entender isto em
diversas passagens do texto sagrado. “Não é bom que o homem esteja só. Vou
fazer-lhe uma auxiliar que lhe corresponda” (Gn 2, 18). Nenhum dos
animais pode ser este “face a face” do varão. A mulher que Deus “modela” da
costela tirada do varão e que leva a ele provoca da parte do homem um grito de
admiração, uma exclamação de amor e de comunhão: “E osso dos meus ossos e carne
de minha carne” (Ga 2, 23). O homem descobre a mulher como um outro “eu”
da mesma humanidade.
372.
O homem e a mulher são feitos “um para o outro”:
não que Deus os tivesse feito apenas “pela metade” e “incompletos”. Ele os criou
para uma comunhão de pessoas, na qual cada um pode ser “ajuda” para o outro, por
serem, ao mesmo tempo, iguais como pessoas (“osso de meus ossos...”) e
complementares como masculino e feminino. No matrimônio, Deus os une de maneira
que, formando “uma só carne” (Gn 2, 24), possam transmitir a vida
humana: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra” (Gn 1, 28).
Ao transmitir a seus descendentes a vida humana, o homem e a mulher, como
esposos e pais, cooperam de forma única na obra do Criador.
373.
No desígnio de Deus, o homem e a mulher têm a
vocação de “submeter” a terra como “administradores” de Deus. Esta soberania
não deve ser uma dominação arbitrária e destrutiva. À imagem do Criador, que
ama tudo o que existe (cf. Sb 11, 24), o homem e a mulher são chamados a
participar na Providência divina em relação às demais criaturas. Daí a sua
responsabilidade deles para com o mundo que Deus lhes confiou.
IV.
O homem no paraíso
374.
O primeiro homem não só foi criado bom, mas também
foi constituído em tal amizade com seu Criador e em tal harmonia consigo mesmo
e com a criação que só serão superados pela glória da nova criação em Cristo.
375.
Interpretando de maneira autêntica o simbolismo da
linguagem bíblica à luz do Novo Testamento e da Tradição, a Igreja ensina que
nossos primeiros pais, Adão e Eva, foram constituídos em um estado “de
santidade e de justiça original”. Esta graça da santidade original era a participação
na vida divina.
376.
Para irradiação desta graça, todas as dimensões da
vida do homem eram fortalecidas. Enquanto permanecesse na intimidade divina, o
homem não devia nem morrer, nem sofrer. A harmonia interior da pessoa humana, a
harmonia entre o homem e a mulher, a harmonia entre o primeiro casal e toda a
criação constituíam o estado denominado “justiça original”.
377.
O “domínio” do mundo, que Deus, desde o início,
havia outorgado ao homem, realizava-se antes tudo no próprio homem como domínio
de si mesmo. O homem estava intacto e ordenado em todo o seu ser, porque livre
da tríplice concupiscência, que o submete aos prazeres dos sentidos, à cobiça
dos bens terrestres e à própria afirmação contra os imperativos da razão.
378.
O sinal da familiaridade com Deus é o fato de Deus
colocar homem no jardim. Lá, ele vive “para cultivar e guardar” (Gn 2,
15): o trabalho não é uma penalidade, mas a colaboração do homem e da mulher
com Deus no aperfeiçoamento da criação visível.
379.
Toda esta harmonia da justiça original, prevista
para o homem pelo desígnio de Deus, será perdida pelo pecado de nossos
primeiros pais.
Resumindo:
380.
“Pai Santo, criastes o homem
a mulher à vossa imagem e lhes confiastes o universo, para que, servindo a Vós,
seu Criador, dominassem toda a criatura”.
381.
O homem é predestinado
para reproduzir a imagem do Filho de Deus feito homem – “imagem do Deus
invisível” (Cl 1, 15), a fim de que Cristo seja o primogênito de uma multidão
de irmãos e irmãs.
382.
O homem é “corpore et
anima unus” (uno de corpo e alma). A doutrina da fé afirma que a alma
espiritual e imortal é criada diretamente por Deus.
383.
“Deus não criou o homem
solitário. Desde o início, ‘Homem e mulher, Ele os criou’ (Gn 1, 27). Esta
união constituiu a primeira forma de comunhão de pessoas”.
384.
A Revelação nos dá a
conhecer o estado de santidade e de justiça originais do homem e da mulher,
antes do pecado: da amizade deles com Deus advinha a felicidade de sua
existência no Paraíso.
PARÁGRAFO 7
A
QUEDA
385.
Deus é infinitamente bom e todas as suas obras são
boas. Todavia, ninguém escapa à experiência do sofrimento, dos males existentes
na natureza, que aparecem ligados às limitações próprios das criaturas e,
sobretudo, à questão do mal moral. De onde vem o mal? “Quaerebam unde malum
et non erat exitus – Eu perguntava de onde vem o mal e não encontrava
saída”, diz Santo Agostinho. Sua própria busca sofrida não encontrará saída, a
não ser em sua conversão ao Deus vivo. Efetivamente, “o mistério da iniquidade” (2
Ts 2, 7) só se explica à luz do “mistério da piedade”. A revelação do amor
divino em Cristo manifestou, ao mesmo tempo, a extensão do mal e a
superabundância da graça. Precisamos, pois, abordar a questão da origem do mal
fixando o olhar de nossa fé naquele que, somente Ele, é o vencedor do mal.
I.
Onde o pecado abundou, a graça superabundou
A REALIDADE DO PECADO
386.
O pecado está presente na história do homem: seria inútil
tentar ignorá-lo ou dar a esta realidade obscura outros nomes. Para tentarmos
compreender o que é o pecado, é preciso antes de tudo reconhecer a ligação
profunda do homem com Deus, pois fora desta relação o mal do pecado
não é desmascarado em sua verdadeira identidade de recusa e de oposição a Deus,
embora continue a pesar sobre a vida do homem e sobre a história.
387.
A realidade do pecado, e mais particularmente a do
pecado das origens, só é entendida à luz da revelação divina. Sem o
conhecimento de Deus, que ela nos dá, não se pode reconhecer com clareza o
pecado, e somos tentados a explicá-lo unicamente como falta de crescimento, como
fraqueza psicológica, como um erro, como consequência inevitável de uma
estrutura social inadequada, etc. Somente à luz do desígnio de Deus sobre o
homem compreende-se que o pecado é um abuso da liberdade que Deus dá às pessoas
criadas para que possam amá-lo e amar-se mutuamente.
O PECADO ORIGINAL: UMA VERDADE ESSENCIAL DA FÉ
388.
Com o progresso da Revelação, é esclarecida também
a realidade do pecado. Embora o povo de Deus do Antigo Testamento tenha conhecido
a dor da condição humana à luz da história da queda narrada no Gênesis, não era
capaz de entender o significado último desta história, que só se manifesta plenamente
à luz da morte e ressurreição de Jesus Cristo. É preciso conhecer a Cristo como
fonte da graça para conhecer Adão como fonte do pecado. É o Espírito Paráclito,
enviado por Cristo ressuscitado, que “acusará o mundo em relação ao pecado” (Jo 16,
8), ao revelar Aquele que é o Redentor do mundo.
389.
A doutrina do pecado original é, por assim dizer, “o
reverso” da Boa-Notícia pela qual Jesus é o Salvador de todos os homens, de que
todos têm necessidade da salvação e de que a salvação é oferecida a todos,
graças a Cristo. A Igreja, que tem o senso de Cristo, sabe perfeitamente que
não se pode atentar contra a revelação do pecado original sem atentar contra o
mistério de Cristo.
PARA LER O RELATO DA QUEDA
390.
O relato da queda (Gn 3) utiliza uma linguagem
feita de imagens, porém expõe um acontecimento primordial, um fato que ocorreu
no início da história do homem. A Revelação nos dá a certeza de fé de que toda
a história humana está marcada pelo pecado original cometida livremente por
nossos primeiros pais.
II.
A queda dos anjos
391.
Por trás da opção de desobediência de nossos
primeiros pais, há uma voz sedutora que se opõe a Deus, e que, por inveja, os
faz cair na morte. A Escritura e a Tradição da Igreja veem neste ser um anjo destronado,
chamado Satanás ou Diabo. A Igreja ensina que ele tinha sido anteriormente um anjo
bom, criado por Deus. “Diabolus enim et alii daemones a Deo quidem
natura creati sunt boni, sed ipsi per se facti sunt mali – Com efeito,
o Diabo e outros demônios foram por Deus criados bons em (sua) natureza, mas se
tornaram maus por sua própria iniciativa”.
392.
A Escritura fala de um pecado destes anjos. Esta “queda
consiste na opção livre desses espíritos criados, que rejeitaram, radical e
irrevogavelmente, Deus e seu Reino. Há um reflexo desta rebelião nas palavras
do tentador ditas a nossos primeiros pais: “E sereis como Deus” (Gn 3, 5). O
Diabo é “pecador desde o princípio” (1 Jo 3, 8), “pai da mentira” (Jo
8, 44).
393.
O caráter irrevogável de sua opção, e não
uma deficiência da infinita misericórdia divina, faz com que o pecado dos anjos
não possa ser perdoado. “Não existe arrependimento para eles depois da queda, como
não existe para os homens após a morte”.
394.
A Escritura atesta a influência nefasta daquele que
Jesus chama de “assassino desde o começo” (Jo 8, 44), o qual chegou até
a tentar desviar Jesus da missão recebida do Pai. “Para isto é que o Filho de
Deus se manifestou: para destruir as obras do Diabo” (1 Jo 3, 8). A mais
grave dessas obras, devido às consequências, foi a sedução mentirosa que
induziu o homem a desobedecer a Deus.
395.
O poder de Satanás, entretanto, não é infinito. Ele
não passa de uma criatura, poderosa pelo fato de ser puro espírito, mas sempre criatura:
não é capaz de impedir a edificação do reino de Deus. Embora Satanás atue no
mundo por ódio contra Deus e o seu Reino em Jesus Cristo, embora a sua ação
cause graves danos – de natureza espiritual e, indiretamente, até de natureza
física – para cada homem e para a sociedade, esta ação é permitida pela divina providência,
que, com vigor e doçura, dirige a história do homem e do mundo. A permissão
divina da atividade diabólica é um grande mistério, mas “Sabemos que tudo contribui
para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8, 28).
III.
O pecado original
A LIBERDADE POSTA À PROVA
396.
Deus criou o homem à sua imagem e constituiu em sua
amizade. Criatura espiritual, o homem só pode viver esta amizade como livre
submissão a Deus. É isto que expressa a proibição feita ao homem de comer da
árvore do conhecimento do bem e do mal, “porque, no dia em que dele comeres, com
certeza morrerás” (Gn 2, 17). “A árvore do conhecimento do bem e do
mal” (Gn 2, 17) evoca simbolicamente o limite intransponível que
o homem, como criatura, deve livremente reconhecer e respeitar com confiança. O
homem depende do Criador, está submetido às leis da criação e às normas morais
que regem o uso da liberdade.
O PRIMEIRO PECADO DO HOMEM
397.
O homem, tentado pelo Diabo, deixou morrer em seu coração
a confiança em seu Criador e, abusando de sua liberdade, desobedeceu ao
mandamento de Deus. Nisto consistiu o primeiro pecado do homem. Todo pecado,
daí em diante, será uma desobediência a Deus e uma falta de confiança em sua
bondade.
398.
Neste pecado, o homem preferiu a si mesmo e não a
Deus, com isso menosprezou a Deus: optou por si mesmo contra Deus, contrariando
as exigências de seu estado de criatura e, consequentemente, de seu próprio
bem. Constituído em estado de santidade, o homem estava destinado a ser
plenamente “divinizado” por Deus na glória. Pela sedução do Diabo, quis “ser
como Deus”, mas “sem Deus, e antepondo-se a Deus, não segundo Deus”.
399.
A Escritura mostra as consequências dramáticas
desta primeira desobediência. Adão e Eva perdem imediatamente a graça da
santidade original. Têm medo deste Deus, do qual fizeram uma falsa imagem, a de
um Deus enciumado das suas prerrogativas.
400.
A harmonia na qual estavam estabelecidas graças à justiça
original, está destruída; o domínio das faculdades espirituais da alma sobre o
corpo é rompido; a união entre homem e a mulher é submetida a tensões; suas
relações serão marcadas pela cupidez e pela dominação. A harmonia com a criação
está rompida: a criação visível tornou-se para o homem estranha e hostil. Por
causa do homem, a criação está submetida à servidão da corrupção. Enfim, se
realizará a consequência explicitamente anunciada para o caso de desobediência:
o homem voltará ao pó do qual é formado. A morte entra na história da
humanidade.
401.
A partir do primeiro pecado, uma verdadeira “invasão”
do pecado inunda o mundo: o fratricídio cometido por Caim contra Abel; a
corrupção universal em decorrência do pecado. Na história de Israel, o pecado se
manifesta, frequentemente e sobretudo, como infidelidade ao Deus da Aliança e
como transgressão da Lei de Moisés. Mesmo após a redenção de Cristo, o pecado se
manifesta de muitas maneiras entre os cristãos. A Escritura e a Tradição da
Igreja não cessam de recordar a presença e a universalidade do pecado na história do
homem:
“O que nos é
manifestado pela revelação divina concorda com a própria experiência. De fato,
o homem, olhando para seu coração, descobre-se também inclinado para ao mal e mergulhado
em múltiplos males, que não podem provir de seu Criador, que é bom. Muitas
vezes, recusando-se reconhecer Deus como seu princípio, o homem destruiu a
devida ordem em relação ao fim último e, ao mesmo tempo, toda a sua harmonia
consigo mesmo, com os outros homens e com as coisas criadas”.
CONSEQUÊNCIAS DO PECADO DE ADÃO PARA A HUMANIDADE
402.
Todos os homens estão implicados no pecado de Adão.
São Paulo afirma: “Pela desobediência de um só homem, a humanidade toda
tornou-se pecadora” (Rm 5, 19). “Pois como o pecado entrou no mundo
por um só homem e, por meio do pecado, a morte passou para todos os homens,
poque todos pecaram...” (Rm 5, 12). À universalidade do pecado e da
morte o Apóstolo opõe a universalidade da salvação em Cristo: “Como a falta de
um só acarretou condenação para todos os seres humanos, assim a justiça de um
só trouxe para todos a justificação que dá a vida” (Rm 5, 18).
403.
Seguindo o pensando de São Paulo, a Igreja sempre ensinou
que a imensa miséria que oprime os homens e sua inclinação para o mal e para a
morte são incompreensíveis, a não ser referindo-se ao pecado de Adão e ao fato
de que ele nos transmitiu um pecado que por nascença nos afeta a todos e é “morte
da alma”. Em razão desta certeza de fé, a Igreja ministra o Batismo para a
remissão dos pecados mesmo às crianças que não cometeram pecado pessoal.
404.
De que maneira o pecado de Adão tornou-se o pecado de
todos os seus descendentes? O gênero humano inteiro é em Adão, “sicut
unum corpus unius hominis – como um só corpo de um só homem”. Em
virtude desta “unidade do gênero humano”, todos os homens estão implicados no
pecado de Adão, como todos estão implicados na justiça de Cristo. A transmissão
do pecado original é, contudo, um mistério que não somos capazes de compreender
plenamente. Sabemos, porém, pela Revelação, que Adão havia recebido a santidade
e a justiça originais não exclusivamente para si, mas para toda a natureza
humana: ao cederem ao tentador, Adão e Eva cometem um pecado pessoal, mas
este pecado afeta a natureza humana, a qual eles transmitirão em um
estado decaído. É um pecado que será transmitido por propagação à humanidade
inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada da santidade e
da justiça originais. Por isso, o pecado original é denominado “contraído” e
não “cometido”; um estado e não um ato.
405.
Embora próprio de cada um, o pecado original não
tem, em nenhum descendente de Adão, caráter de falta pessoal. Consiste na
privação da santidade e da justiça originais, mas a natureza humana não está totalmente
corrompida: ela está ferida em suas próprias forças naturais, submetidas à
ignorância, ao sofrimento e ao poder da morte, e inclinada ao pecado (esta propensão
ao mal é chamada “concupiscência”). O Batismo, ao conferir a vida da graça
de Cristo, apaga o pecado original e faz o homem voltar para Deus. No entanto, as
consequências de tal pecado sobre a natureza enfraquecida e inclinada ao mal,
permanecem no homem e o incitam ao combate espiritual.
406.
A doutrina da Igreja sobre a transmissão do pecado
original adquiriu precisão sobretudo no século V, em especial sob o impulso da
reflexão de Santo Agostinho contra o pelagianismo, e no século XVI, em oposição
à Reforma protestante. Pelágio sustentava que o homem podia, pela força natural
de sua vontade livre, sem a ajuda necessária da graça de Deus, levar uma vida
moralmente boa; limitava assim a influência da falta de Adão à de um mau
exemplo. Os primeiros reformadores protestantes, ao contrário, ensinavam que o
homem estava radicalmente pervertido e sua liberdade anulada pelo pecado original:
identificavam o pecado herdado por cada homem com a tendência ao mal (“concupiscentia”),
que seria insuperável. A Igreja pronunciou-se especialmente sobre o sentido daquilo
que foi revelado, no tocante ao pecado original, no segundo Concílio de Orange,
em 529, e no Concílio de Trento, em 1546.
UM DURO COMBATE...
407.
A doutrina sobre o pecado original – ligada estritamente
à doutrina da redenção realizada por Cristo – propicia um olhar de lúcido
discernimento sobre a situação do homem e de sua ação no mundo. Pelo pecado dos
primeiros pais, o Diabo adquiriu certa dominação sobre o homem, embora este permaneça
livre. O pecado original acarretará a “servidão debaixo do poder daquele que
tinha o império da morte, isto é, do Diabo”. Ignorar que o homem tem uma
natureza ferida, inclinada ao mal dá lugar a graves erros no campo da educação,
da política, da ação social e dos costumes.
408.
As consequências do pecado original e de todos os
pecados pessoais dos homens conferem ao mundo, em seu conjunto, uma condição
pecadora, que pode ser designada com a expressão de São João: “o pecado do
mundo” (Jo 1, 29). Com esta expressão se quer expressar também a
influência negativa que exercem sobre as pessoas, as situações comunitárias e
as estruturas sociais, que são o fruto dos pecados dos homens.
409.
Esta situação dramática do mundo, que “inteiro está
sob o poder do Maligno” (1 Jo 5, 19), faz da vida do homem um
combate:
“Uma luta árdua
contra o poder das trevas perpassa a história universal da humanidade. Iniciada
desde a origem do mundo, vai durar até o último dia, segundo as palavras do
Senhor. Envolvido nesta batalha o homem deve lutar sempre para aderir ao bem. Ele
não pode alcançar sua unidade interior senão com grandes esforços e com o auxílio
da graça de Deus”.
IV.
“Não o abandonastes ao poder da morte”
410.
Depois da queda, o homem não foi abandonado por
Deus. Ao contrário, Deus o chama e lhe anuncia, de modo misterioso, a vitória
sobre o mal e o reerguimento da queda. Esta passagem do Gênesis foi chamada de ‘proto-evangelho’,
por ser o primeiro anúncio do Messias redentor, do combate entre a serpente e a
Mulher e da vitória final de um descendente desta última.
411.
A tradição cristã vê, nesta passagem, um anúncio do
“novo Adão”, que, por sua “obediência até à morte – e morte de cruz” (Fl 2,
8), repara com superabundância a desobediência de Adão. Além disso, numerosos Padres
e Doutores da Igreja veem na mulher, anunciada no “proto-evangelho”, a mãe de
Cristo, Maria, como “nova Eva”. Foi ela que, primeiro e de forma única, se beneficiou
da vitória sobre o pecado conquistada por Cristo: ela foi preservada de toda mancha
do pecado original e, durante toda a vida terrestre, por graça especial de
Deus, não cometeu nenhuma espécie de pecado.
412.
Por que, no entanto, Deus não impediu o primeiro
homem de pecar? São Leão Magno responde: “A graça inefável de Cristo
deu-nos bens melhores do que aqueles que a inveja do Demônio nos havia
subtraído”. Santo Tomás de Aquino: “Nada obsta a que a natureza humana tenha
sido destinada a um fim mais elevado após o pecado. Ccom efeito, Deus permite
que os males aconteçam para tirar deles um bem maior. Donde a palavra de São
Paulo: ‘Onde, porém, se multiplicou o pecado, a graça transbordou’ (Rm 5,
20). E o canto do Exultet: ‘Ó feliz culpa, que mereceu tal e tão grande
Redentor!’”.
Resumindo:
413.
“Deus não fez a morte, nem
se alegra com a perdição dos vivos […]. Foi por inveja do Diabo que a morte
entrou no mundo” (Sb 1, 13; 2, 24).
414.
Satanás ou o Diabo, bem
como os demais demônios, são anjos decaídos por terem recusado livremente a servir
a Deus e ao seu desígnio. Sua opção contra Deus é definitiva. Eles tentam
associar o homem à sua revolta contra Deus.
415.
“Constituído por Deus em
estado de justiça, o homem, instigado pelo Maligno, desde o início da história,
abusou da própria liberdade. Levantou-se contra Deus, desejando atingir seu
objetivo fora dele”.
416.
Por seu pecado, Adão, na
qualidade de primeiro homem, perdeu a santidade e a justiça originais que havia
recebido de Deus não somente para si, mas para todos os seres humanos.
417.
À sua descendência, Adão e
Eva transmitiram a natureza humana ferida por seu primeiro pecado, portanto
privada da santidade e da justiça originais. Esta privação é denominada “pecado
original”.
418.
Em consequência do pecado
original, a natureza humana está enfraquecida em suas forças, submetidas à
ignorância, ao sofrimento, à dominação da morte, e inclinada ao pecado (inclinação
chamada de “concupiscência”).
419.
“Afirmamos, portanto, com
o Concílio de Trento, que o pecado original é transmitido com a natureza
humana, ‘não por imitação, mas por propagação’, e que ele é, portanto, próprio
de cada um”.
420.
A vitória sobre o pecado,
conseguida por Cristo, deu-nos bens melhores do que aqueles que o pecado nos
havia tirado: “Onde se multiplicou o pecado, a graça transbordou” (Rm 5, 20).
421.
“Segundo a fé dos
cristãos, este mundo foi criado e conservado pelo amor do Criador; certamente,
este mundo foi colocado sob a escravidão do pecado, mas Cristo crucificado e
ressuscitado quebrou o poder do maligno e libertou o mundo…”.
0 Comments:
Postar um comentário